30 janeiro, 2006

Ciência


-Bilé, descobri uma coisa que você não vai acreditar!
-Tô ocupado Nina, fala mais tarde.
-Mas é importante. Estavam enganando a gente o tempo todo.
-Você não vê que eu tô no meio de uma experiência importante Nina? Tô quase achando a fórmula para matar formigas.
-Sério? Nossa, faz tanto tempo que você procura. Mas escuta, é importante...
-Presta atenção. Vou jogar uma gota, apenas uma gota na formiga... Pronto! Viu?
-Bilé, ela continua viva.
-Você é muito burra mesmo, não entende nada de química. Ela já tá morrendo.
-Ela só tá tentando sair da pocinha que você fez.
-E eu ainda perco tempo explicando. É uma fórmula que acelera o envelhecimento, ela já tá morrendo e nem sabe disso. Entendeu agora sua anta. Ela tá envelhecendo mais depressa.
-Não sei não. Achava melhor aquele veneno que você tinha feito pra barata. Que você colocava ela mergulhada dentro de um pote fechado cheio do teu veneno e colocava no congelador. Depois de uma semana ela tava morta. Você tinha certeza que ela não tinha se afogado?
-É tão óbvio Nina. O veneno mata ela antes dela se afogar.
-Tá tá. Mas e ai? Vai me escutar agora ou não?
-Fala anta gorda.
-É o seguinte, eu descobri uma coisa.
-Sempre dramática. Desembucha.
-Os adultos.
-O que tem eles?
-Eles tão mentindo.
-Como assim?
-Eles não sabem de nada. Apenas fingem que sabem.
-Hã?
-Veja bem. Os adultos falam pra gente sempre agir de determinada forma, vestir de determinado jeito, acreditar em determinadas coisas e a gente obedece porque eles tem mais experiência e acha que sabem das coisas.
-Eu obedeço porque senão apanho.
-Tá. Mas mesmo assim. Eles tentam impor seu ponto de vista porque se assumirem que não sabem nada, ninguém dá valor pra eles. Eles não conseguem emprego e são chamados de sem personalidade, seja lá o que isso quer dizer. Além do mais, eles sempre tão competindo, e se você assumir que não sabe nada todo mundo ri de vc e te passam pra trás. Então eles inventam um monte de bobagens e fingem que tem certeza de que são verdades, como ninguém quer dar uma de idiota todos concordam, mas na verdade não sabem necas de pitibiribas. Que nem a histórinha da roupa nova do rei.
-Legal. Mas agora calaboquinha e dá uma olhada nessa experiência aqui. Eu usei carga de canetinhas velhas e água. Eu sou um gênio.
-O que ela faz?
-Não sei, mas a cor ficou bonita pra caramba.

19 janeiro, 2006

Overdose


Não lembro que horas eram quando elas começaram a chegar, recordo-me apenas da boca seca, da ardência nos olhos e da lua alta e clara. Elas não se intimidavam apesar da minha insistência em lembrá-las de sua sutil condição de meras alucinações, pelo contrário, reagiam cada vez mais agressivas apesar de minha perceptí­vel indiferença causada pela rotina da situação.

Em minha entorpecida mente flutuavam frases vagas e fragmentos de lembranças que, imagino, venham dos livros de Castañeda e Hesse além de alguns inúteis comerciais apelativos e ineficazes que são veiculados para coibir tal torpor. O eco em minha consciência insistia em repetir a efusiva sentença :"danos cerebrais irreversí­veis". Porém, como seria uma mente humana para a consideramos normal, sem danos? Qual o grau de clareza de pensamento que é utilizado como referência para tal mensuração? Aliás quem definiu o que é clareza de pensamento? Soltas perguntas cujas respostas não obtive.

O coração parecia querer explodir em meu peito quando o suor gelado e malcheiroso começou a escorrer, sua consistência viscosa impregnou meu corpo inteiro.

Assistir Tv era impossí­vel, foder com a garota que estava ao meu lado também não era opção, conversar nem pensar. O único pensamento que amenizava aquela angústia ferrenha era imaginar a chegada da moto que traria mais uma dose. Mas isso não ia acontecer e a agonia aumentava. Então resolvi sair, chamei as chaves, sai sem abrir a porta e levitei até o carro.

Vultos de homens errados, sonhos, penumbra, solidão e noite eram minhas constantes companhias. Foi então que resolvi desacelerar, aproveitar o clima pesado, suguei a doce aura de contravenção que do caminho emanava. Agora, apenas ébrio, supunha saber meu destino, pelo menos o desse instante.

17 janeiro, 2006

Steppenwolf

Depois de uma noite em companhia da menina, sua sina, o velho trôpego segue o caminho de volta para sua casa machucado.
Mostrou a lua e contou sobre lendas antigas que a imaginavam como olho de um enorme dragão que engolia o sol toda manhã, falou de musicas e vomitou livros, bebeu e sorriu. Usou de todas seduções que conhecia, precisava urgentemente dela. Seu olhar cínico de anos tinha se tornado diferente, agora habitavam em suas órbitas um outro, desesperado.
Só que nessa noite, nessa maldita noite, um eclipse veda calmamente a lua enquanto ela diz que ainda ama outro.

Seu peito sangra, seu cérebro chia, o mundo julga e ele volta pra casa.
Se ao vê-lo o compadecimento nos provesse de uma faculdade gentil que, apurando-nos os ouvidos, permitisse ouvir o senil diálogo com o seu lobo travado dentro da própria cabeça...

-É velho! Faz tempo que nos conhecemos. Mas estás diferente. O que houve? Seria o nó de tua gravata ou tua lí­ngua arfante?
-Realmente faz tempo. Não sei se queria que fosse tanto. O que me difere nem sei mais. Sei que até o dragão fechou o olho para mim, engoliu o sol e dormiu de vergonha.
-Percebi que, na volta pra casa, pegaste o caminho mais longo.
-Perdi-me em devaneios. É triste o caminho da alma.
-Há, há, há! Faz-me rir suave hipócrita, na alma não acreditas. Mas diga-me, esqueceste de como seduzir?
- Minhas regras não se valem mais. Ela me afeta.
- Há, há, há. Assim estoura-me os pulmões. Estavas acostumado a assistir tudo de longe como um voyeur, seu desgraçado. As paixões eram melhores quando deixavas à meu cargo, não é? Simples, diretas e rápidas. Nos satisfazí­amos e seguí­amos, incólumes, nossos caminhos. Agora que tu, grandissí­ssimo filho da puta, depois de todos esses anos quieto, vieste atrapalhar tão sutil equilí­brio, viraste tudo numa grande merda.
- Vai se fuder ignóbil lupino. Achas que me sinto confortável em tal situação? Nunca me senti tão próximo à tua triste condição.
- Ei, ei. Não acredito! O que aconteceu com o dono do rico vocabulário? Ainda me surpreendes! Estás à utilizar palavras da carne agora? Cadê a prepotência de teus vocábulos de que tanto te convencias? Aquele rebuscamento procurado para empertigar tua falta de idéias? Esqueceste? Sou eu que estraçalho, tu estrafegas. Eu mando tomar no cú, tu rodeias com jogo de palavras para ofender ao demonstrar a fraqueza dos argumentos adversários. Já quebras as regras por ti mesmo impostas? Achei que o mais próximo de tais ofensas a mim seria seus pensamentos auto-destrutivos das manhãs de ressaca moral que o obrigo a passar depois de minhas maravilhosas e ébrias noites.
- Tu me irritas. Quem pensas que és para me julgar? Satisfaz-te com fugazes e fúteis paixões, estrafegando sentimentos de pessoas boas. Delicia-te em ví­cios degradantes e se vai. Não se importa com ninguém e vives uma existência parasitária, sugas até a saciedade e segues adiante.
- Agora tu é que me irritas. Seu fraco filho da puta. Falas que eu faço mal? És tu que sugas não só a carne mas também quer o cerne. Me contento com uma foda mas queres a vida inteira. Você é que destrói, eu só passo. Acho engraçado tua pausa quando lhe perguntam se estás feliz, nunca tens certeza se sou eu ou tu que estás. Mas admita. Não sabes lidar com a situação. Estás fudido meu amigo. Não é ela a errada, não passa de uma criança a brincar. És tu que estás apavorado. Eis o problema: Todas as certezas que tinhas, teu consentimento em me deixar tomar conta, de decidir, tudo isso inverteu. Apavorado, tentas tomar a rédea mas não sabes mais (se é que um dia soube) conduzir. Estás em desabalada corrida e não sabes para onde vais e tão pouco tens freio.

13 janeiro, 2006

Vingança?

A loucura patética de minha cabeça tua sanidade afronta.
Teu equilí­brio estúpido cumeado pela indiferença sangra meu sequioso prazer do ébrio.

Por isso beberei.
Uma ode aquilo que hipócrita me torna.
Divagarei perdido no jorro dourado que plasmará meu cérebro, chutarei cachorros nos dentes, mastigarei a fumaça escrota de um cigarro barato e cuspirei verdades inventadas nos ouvidos sôfregos de ordens absolutas dos meus iguais.
Gozarei em bucetas ordinárias com a sinceridade de seu deus.
E farei tudo dançando, dançando com a suavidade de um deselegante sem dor. Ciente de que toda dor ficou pequena perto da que estarei esquecendo.

Mas, no final da noite...
deitado, mijado, estragado, surrado, sangrando, morto e esquecido
sei que ainda berrarei teu nome

10 janeiro, 2006

O filho do puto

O filho da puta não morre, está deitando naquela fétida cama de hospital resmungando frases sem sentido nos seus devaneios constantes causados pela febre.
Ninguém liga para o idiota, sua única companhia na hora da verdade sou eu, seu filho. E não. Não estou aqui por compaixão ou para demonstrar algum sentimento bom. Aqui estou para regojizar este momento de liberdade. Esta liberdade do peso que insiste em rodear minha vida. Maldita consciência que insiste em me atormentar.
Considero este meu comportamento completamente normal. Vejo meu asco com ele uma consequencia instintiva. Comparo aos comportamentos dos bandos selvagens onde os machos jovens acabam sentindo uma aversão inconsciente por seus pais e se vêem na obrigação de abandonar o grupo.
Ele tosse e acorda. Fica feliz por eu estar ao seu lado. Retorno um riso forçado.
-Tinha tanta coisa pra fazer.
-É. Realmente não dá tempo.
-Nunca dá. Mas também vivi bem. Não realizei um décimo dos meus sonhos, mas os que realizei compensaram.
-Pena que nunca repartiu isso comigo.
-Você fala como se estivesse, em alguma momento, disposto a ouvir.
-É, talvez tem razão. Mas você poderia escrever sobre o que ainda gostaria de fazer e sobre o que já fez...
-Não. Não tenho mais tempo. A iminência do meu fim me obrigaria a escrever alguma coisa importante. Não tenho a competência, sou banal. Teria que conseguir descrever uma vida, e isso, com certeza, não cabe nas palavras. Além do mais, prefiro acabar deixando a expectativa de que conseguiria deixar um legado genial do que frustrar a todos com textos medíocres.
-Resumindo: é melhor não tentar do que tentar e fracassar.
-No fim da vida não temos tempo pra fracassarmos, ou o somos ou não. No meu caso fica o óbvio.
-E o que achas de se sentir fracassado?
-Sempre ignorei o óbvio. Sempre escondi minha covardia atrás das ideologias. Nunca tive a real coragem de tentar, então depreciava todos que, de alguma forma, lutavam. Pelo medo do fracasso não tentei. Assumi uma postura oposta ao sistema por medo de que não conseguiria sobreviver à ele. Combati o que eu sei que não venceria. Fui contra porque sabia que não teria competência de ter sucesso. Aliás, se fosse definir minha vida em uma palavra ela seria medo. Tinha medo das pessoas, não compreendia suas reações, tinha medo do fracasso que viria com certeza, tinha medo de não me amarem, tinha medo de não fazer diferença, tinha medo de tudo em que acabei me tornando.

O patético dele me impressionava. Aquele homem que sempre parecera sincero aos meus olhos estava agora se mostrando o mais hipócrita que eu já percebera. Tive raiva. Tive medo. Tive certeza. Sou igual à ele.