19 abril, 2006

Natureza morta


-Jazia inerte. Balbuciava Amando.
-Jazia inerte. Repetia insistentemente. Suas frases não conseguiam permanecer em sua cabeça, seus lábios insistiam em mover-se dando vazão a algo que precisava ser expurgado.
-Jazia inerte, jazia inerte, jazia inerte...
O enfermeiro chega à sua porta. É sua vez de tomar o remédio. A pí­lula azul é parte do tratamento, faz ele ficar calado e parecer mais normal, quase aceitável para os outros. O que ninguém sabia, aliás estavam pouco se fodendo, era que os lábios paravam mas a sua cabeça continuava.
-Jazia inerte, jazia inerte, jazia inerte...
A pequena cápsula desliza facilmente com um gole de água. Uns minutinhos. Pronto. O fio de baba que escorre pelo queixo indica que já fez efeito. O enfermeiro sai mas deixa a porta aberta para socorrê-lo rapidamente caso exploda em mais um de seus surtos violentos.

O começo dos surtos é tranquilo, Amando começa fitando fixamente a alva parede da clí­nica, um lugar qualquer, escolhido aparentemente a esmo. A brancura incólume das paredes o aquieta. O acesso começa quando a parede vai se pintando de rubro. Tudo fica vermelho para seus olhos saturados de violência. Violência que começara a usar para sentir-se menos amortecido em seu entorpecimento causado pela insensibilidade. Um acordo entre ele e Maria que padecia da mesma tara.
-Jazia inerte...
Desde que tivera a triste constatação de que Maria jazia inerte, ele repetia a sentença como uma oração. Sua mente congelara no tempo. Estagnou na visão de Maria que, depois de golfar sangue aos espasmos, cessou de gemer.
Daquele dia em diante Amando foi enclausurado naquele manicômio. Sua noção de realidade esvaí­ra-se com a vida de Maria.
A passagem de um gozo explêndido para a difícil realidade foi demais para sua sanidade. Perdêra a noção da intensidade dos golpes com que Maria pedí­ra para substituir as carí­cias. Ela não aguentou...
Nos escuros labirintos de sua mente procura um caminho que o leve à almejada redenção, sem o mínimo sucesso.
-Jazia inerte, jazia inerte, jazia inerte...

"A lua cheia convida para um longo beijo mas o relógio te cobra o dia de amanhã
Estou sozinho, perdido e louco no meu leito e a namorada analisada por sobre o divã
Por isso agora o que eu quero é dançar na chuva
Não quero nem saber do que fazer, vou me matar
Eu vou deixar um dia a vida e a minha energia
sou um castelo de areia na beira do mar..."
(adulterado desavergonhadamente, porém, propiciamente)

18 abril, 2006

O Parto de um texto (ou Maquiagem e Morfina)

O ócio atormentado erige a pena que, seringa cheia de um suor que escorre por dentro, investe palavras contra a alvura do papel tornando-o mais puro na medida que macula.

O tormento provém do que fere a alma, sangra os princí­pios e derruba os dogmas tão arduamente construí­dos com a brisa que a musa, êmbolo precí­puo de tudo, forma simplesmente por existir.

A musa, parto inverso (nasce pra dentro), violenta a ví­tima cingindo a navalha que causa o corte, que causa a dor, que causa o texto, que se finge de cura.

Cura que entorpece ao mesmo tempo que vici­a.

Maquiagem que morfina,
Morfina que disfarça,
Morfina que vicia,
Morfina que me nina.

10 abril, 2006

Cicatrizes

Sim eu sei, vai doer.
A espera é angustiante. Chegará! Só sei que chegará.
O momento da incisão se aproxima a passos mornos. A navalha separará dois pedaços de carne tão confortavelmente unidos que, de surpresa, chorarão jorros de uma chuva rubra. Contarão pros nervos que devem levar o impulso inevitável ao cérebro, que interpretará e resultará no objetivo precí­puo de toda essa ação: a dor.
Ela virá. A certeza na iminência a eterniza. Já golpeio meu peito, tento acostumar meus nervos com dores menores para, na hora lancinante derradeira, estarem entorpecidos e não se surpreenderem tanto.
Não, não vou me machucar menos. Quanto a isso não alimento ilusões. A faca fere, a espera fere, a certeza fere.
Só espero que se possa viver com tantas cicatrizes.

06 abril, 2006

O tempo de uma lembrança

As lembrançs, aos poucos, vão se dissipando. Acompanham o esvaecer do teu cheiro no colchão, na toalha, nas minhas roupas e na minha pele.
Teus cabelos pelo chão são levados pelo vento que o tempo empurra impertinente pelo quarto. O resto de nossa última pizza comida no chão da sala apodrece na geladeira.
Os objetos que denunciam tua presença são, dolorosamente, colocados em seus lugares. O violão foi encapado, teus grampos de cabelo, antes espalhados por toda casa, foram agrupados e serão esquecidos na gaveteira. Teus telefonemas e mensagens na memória do celular são substituídos, pouco a pouco, por outros.

Mesmo assim, teus risos e gemidos ainda ecoam em mim. Teu sorriso de acanhamento ao me ver extasiado contemplando teu secar gracioso e peculiar de tuas longas pernas ainda resistem na penumbra do meu banheiro.

Mas as manchas no lençol, o qual me recuso a lavar, que pintamos com a mistura de nossos fluídos quando ainda explodíamos em gozos invejáveis, permanecerá. Pelo menos até o momento em que desistirei de esperar a tua volta.


"Cook me in your breakfast
And put me on your plate
'Cause you know I taste great"
Devendra

05 abril, 2006

Fadados

Ela veio assustada e me disse entre soluços:
- Mas não temos nada em comum. Você não percebe? Não concordamos em política, religião, música, em nada. Como construir algum tipo de relacionamento somente em cima de discordâncias? Nunca ouvi falar de um casal que tenha ficado junto além das primeiras trepadas sem ter nada em comum. Estamos fadados ao fracasso. Pra que adiar o inevitável? Pra depois sofrer mais? Nós deveríamos...
Não gostando do rumo da conversa e com medo da conclusão eu a interrompi:
- Nós dois gostamos de você. Poderíamos começar daí.

"Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim"

04 abril, 2006

O pastor de nuvens

Naquela terra distante o sol demorava em sua revolução, rolava pela abóbada celeste cheio de preguiça. Quando a pino, estagnava e todos juravam que, se não houvesse um mínimo impulso decorrente da inércia, voltaria a resvalar pelo lado que tinha vindo e acabaria se pondo no exato lugar em que tinha nascido. Ali existia um menino. Este menino gostava de ficar em cima de uma grande árvore velha e seca que existia perto de sua casa, quase no meio do vale. Ele ficava lá, observando por horas, perscrutava com tanta intensidade aquele céu azul enorme que só existe nas nossas lembranças de infância que chegava a ficar tonto. Seus olhinhos frenéticos percorriam todo horizonte, atento as montanhas que rasgavam o manto azul sem cerimônia. No inverno as nuvens agrupadas formavam uma única e enorme massa cinzenta que cobria o céu inteiro. Elas eram aquosas e enchiam o chéu qual uma taça invertida, imergindo os cumes e grande parte das montanhas. Não que o menino não gostasse, mas não eram essas que esperava. Essas eram ralas feito fumaça, apenas envolviam as montanhas, enfeitavam-nas com gotas brilhantes para depois abandoná-las. O que o menino esperava na árvore eram as nuvens do verão. Ah! Aquelas pequeninas e alvas, perdidas no céu imenso, essas sim eram densas o suficinte. Ele as acompanhava pelo trajeto que o vento impunha ditatorialmente com o coraçãozinho batendo forte no peito. Normalmente nada acontecia e a pequena nuvem desaparecia, levada para longe, por terras estranhas que o menino ficava a imaginar. Talvez fossem em direção à outros meninos que, como ele, gostavam de pastorear as nuvens. Vez ou outra, numa trajetória infeliz, uma nuvem encostava nos escarpados montes e ficava presa nas rochas potiagudas. Se emaranhava de tal forma que nenhum vento dali conseguia tirá-la e, se não fosse o menino, só se desmancharia em água quando o mesmo acontecesse a muitas nuvenzinhas e, condensadas, tivessem tamanho suficiente para proporcionar a vazão. Essa era a realização do menino, ele pulava da árvore e corria em direção a nuvem solitária.Corria por distâncias consideráveis e ladeiras íngremes, chegava exausto e entrava naquela imensidão branca que amenizava toda luz e ruído. Era um silêncio de todos os sentidos que inundava sua alma. Ele aproveitava por alguns minutos aquela paz tão esperada até começar a pular e agitar os bracinhos cada vez mais rapidamente. Empurrava a nuvem para todos os lados até que ela conseguisse se soltar e seguir sua viagem. Ele já tinha ficado muito bom e facilmente identificava o ponto exato que deveria ficar no meio da nuvem, o tanto que deveria saltar, para onde e como deveria mexer os braços. Com o tempo percebia facilmente as nuvens que descreveriam o trágico percurso e se antecipava. Conseguia chegar antes do choque ocorrer e as afastava das ameaçadoras pontas dos rochedos. Cada vez ele pulava mais alto para chegar antes às nuvens que ainda estavam muito longe do chão. Ás vezes, como o pulo era muito demorado, as nuvens o carregavam por certa distância, pousando o menino longe do ponto de partida. De tão alto que aprendeu a pular, seu pequeno vulto investindo contra o céu podia ser observado das cidades vizinhas, se tornando distração constante para as muitas horas de repouso dos cidadãos que gostavam de ficar vendo aquele menino brincar com as nuvens. Em um belo dia, cheio de nuvenzinhas arredias, o povo ria das peripécias do menino para dar conta de todas as desgarradas, quando, ao fim de um salto fabuloso, ele não desceu mais. Ficaram olhando para o céu por muito tempo e nem sinal do menino. Provavelmente foi carregado ou resolveu montar em uma nuvem mais robusta e conhecer os lugares que apenas passavam em sua cabecinha de menino. Não temos como saber.
Não me espantaria se ele acabasse aparecendo por aí. Aí mesmo, onde você está lendo essas palavras, devolvido a terra junto com uma chuva de verão e começasse a pastorear suas nuvens.