30 agosto, 2006

Eremita


Da vida estranha que tinha, só a certeza da solidão lhe restara. Sempre que estava acompanhada lhe vinha o irresistível instinto de estar só. assim ficava, assim era melhor.

Tudo era muito complicado, ela percebia que era covardia, mas não aguentava lutar mais. Quando zombavam da existência de eremitas naquelas cercanias, não compartilhava do absurdo que invadia seus amigos. Percebia a mesma lógica, sentia que era feita da mesma substância. Uma espécie de suicídio sereno.

Afinal não entendia pq continuava naquela luta ferrenha que travava com quem não conhecia. Cansou de esperar, cansou de acordar, cansou de olhar no relógio, cansou de ter que ficar a parte melhor da vida, os dias mais ensolarados, presa em um escritório cujo trabalho não via significado. Alias não via significado em nenhum trabalho, a não ser o que gerasse um produto que diretamente necessitava.
Era culpa dela não perceber o valor que todos viam? Na verdade ela imaginava que todos percebiam o mesmo que ela, só que entendiam alguma coisa a mais. Algo que ela, em seu maior esforço, não conseguia compreender. Não adiantava, estava a vida inteira procurando essa visão redentora que todos, menos ela, possuíam.

Cansou.

A última vez que foi vista estava enfeitando um sonho de um moço bonito e confuso. Perdeu-se nos confins de uma serra de ferro. Uma serra que atrapalhava as bússolas e assustava os turistas. Lá se concentrou em enfeitar a própria vida e gritou a plenos pulmões:

- Que se foda o resto.

Foi o último palavrão, aliás as últimas palavras, que proferiu. Hoje anda sobre as brumas que se esparramam pelas montanhas nas primeiras horas do alvorecer.



"And I got troubles oh, but not today
Cause they gonna wash away
This old heart gonna take them away"
tesão:
http://www.youtube.com/watch?v=uu7BasZwjDw

28 agosto, 2006

Não consegui voar


"Maria acordou suando, o sol já estava alto e o edredon era pesado demais. Merecia um banho demorado depois de uma noite tão difícil. O chuveiro queimou de novo.
- Zé vai me matar.
Mas não importa mais, foi seu último banho naquele chuveiro que não agüentava muito tempo ligado.
Ela acorda seu amigo com um beijo. Ele teve a pior noite da sua vida e Maria se sente impotente em não conseguir tirar sua dor. Mas ao menos estava ali, como ele pediu.
(...) Ontem...

- Que diabo é essa coisa de ver o outro sofrer e sentir também a dor?
Maria não aprende. Sempre altruísta, sem perder essa mania. Como se tivesse esse controle. Talvez tenha prazer nisso, mas não tem ainda essa noção. Sofre de verdade.

- Ora, isso não é altruísmo, é burrice!
- ...
- Sei o que está sentindo, Zé.
- Você não tem como saber, nunca passou por isso. Vê se já teve esse problema de alguém não te querer? Todo mundo te quer.
- ...
- Tô afim de sacanear todo mundo.
- Não é justo. Pouca gente merece.
- Todo mundo merece. A vaca é uma filha da puta, eu sou filho da puta, você também é filha da puta.
- Tenho uma solução. Vamos pular da janela?
- Acho uma boa idéia. Vamos tentar cair em cima de algum carro lá embaixo para sacanearmos mais alguém? Não tem problema, o dono do carro também é um filho da puta.

Um breve silêncio. Não havia mais as velhas músicas ao fundo. Todas elas o remetiam a dolorosas lembranças que não mereciam ser lembradas. Mas outros sons tomaram conta da noite quente, seca e sem lua: sirenes, gritos, choros...

Olhando pela janela:
- Será que a gente voa, Maria?
- Daqui a pouco vou conseguir voar. É só fechar meus olhos.
- Não dormindo, sua doida. E se, em vez de cair, voássemos de verdade?

Foi tudo que ela conseguia se lembrar.
(...)
-Bom dia ma petite!
- Zé, essa noite não consegui voar. Mas eu vi que você conseguiu. Vi você voando bem alto. Você sorriu, um sorriso tão lindo que me fez sorrir também. Disse que sua dor havia passado e estava feliz."


pour petite



"...Eu só voltei pra te contar
Viajei...Fui pra Serra do Luar
Eu mergulhei...Ah!!! Eu quis voar
Agora eu sei, vim pra terra pra ficar.

Viver é afinar o instrumento
De dentro pra fora
De fora pra dentro..."

11 agosto, 2006

Hoje vou te fazer chorar...


A menina mais triste do mundo estava sentada no banco que ficava bem no meio da praça vazia. Pousava sua cabeça nas mãos enquanto contemplava fixamente o chão.

No mesmo instante a mulher feia cruza a esquina e pára ante a visão da menina mais triste do mundo.

A moça feia olha a menina mais triste do mundo e sorri ironicamente. "Que falta do que fazer. Ela deveria é arrumar uma trouxa de roupa suja pra lavar."

A moça feia não tinha tempo de ser triste, se ocupava vivendo, pensava nos filhos que tinha que alimentar, sozinhos em casa.

Enquanto isso, a menina mais triste do mundo, sentada no banco velho da praça vazia, pensava ao ver a mulher feia ao longe: "Ela deve estar me julgando. Mas a culpa dela ser feia é dela, se fosse esperta não teria tido os filhos, teria estudado, arrumado um bom emprego e daí poderia ser tão triste quanto quisesse."


"Nunca pensei um dia chegar, e te ouvi dizer:
-Não é por mal, mas vou te fazer chorar. Hoje vou te fazer chorar.

Não tenho muito tempo, tenho medo de ser um só, tenho medo de ser só um alguém pra se lembrar.
-Alguém pra se lembrar.

Deixei que tudo desaparecesse e, perto do fim, não pude mais encontrar, e o amor ainda estava lá.
-A porra do amor ainda estava lá."

04 agosto, 2006

Tudo que é peito sangra

O escroto sai do puteiro batendo a porta e vestindo a camisa com raiva. Entredentes esbraveja:

- Quem essa puta pensa que é pra vir me falar de amor? É usada por homens ha tanto tempo que confunde carência com amor. Bom, talvez seja mesmo. Só sei que amor é uma merda, não vale a pena. É tão necessário quanto uma dor de dente. Quem fala o contrário é pra se iludir, pra tentar não ver o tempo que se perde com ele. É só sofrimento. Sofre-se enquanto ama porque tem medo de perder, e sofre de autopiedade e raiva depois que se toma um pé na bunda. É uma porra de um sofrimento desgraçado. Essa coisa é pra masoquistas e eu não levo jeito pra isso.

O escroto continua pisando firme. Atravessa a noite gelada vermelho de raiva. Cruza os becos molhados de sereno entre latidos dos cachorros irritados.

- Aquela vaca. Eu já disse pra ela que eu não amo nada e ninguém. Disse isso todas as noites que fui procurá-la. Aliás todos as noites desses últimos 6 anos. Gastei todo meu dinheiro com a vagabunda, até que, finalmente, desistiu de me cobrar. O saco é ter que esperar o fim do expediente, mas eu fico lá, nem que seja só para dar uma foda e dizer que eu não a amo. Daí ela chora e eu vou embora. É sempre assim. Amanhã eu volto, agora ela vai chorar até dormir. Essa piranha não sabe nada sobre o amor.

"O amor é um palito de fósforo chapinhando em um mictório de um banheiro sujo"

"Às vezes eu quero chorar
Mas o dia nasce e eu esqueço.

Meus olhos se escondem
Onde explodem paixões

E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista p'ro mar

Ou outra coisa p'rá lembrar"