27 maio, 2007

Os donos dos nomes

E ali naquele bairro, por costume há muito esquecido, as coisas tomavam outros nomes. Nada mais comum, já que de casas eram chamados aqueles amontoados de madeira e plástico equilibrados por um milagre perene mantido pela ignorância dos moradores às mais básicas leis da física. Também eram chamadas de ruas aquelas estreitas e tortas vielas por onde escorria um eterno líquido malcheiroso que lá se atreviam a chamar de água.

Por isso não me espantei quando o pó que sempre sustentara minha família novamente mudou de nome. Tanta dificuldade em aprender coisas novas na escola mas essas mudanças de ordem prática firmavam fácil na minha cachola. Cânfora, não sei quem inventa esses nomes, sei que se difundem mais rápido que pipoco de quinzão e, de um dia pro outro, todo mundo assim já chamava.

Meu pai era um dos transportadores de papelotes de uma boca pra outra na medida da necessidade. Para tanto, era por ele recebida uma pequena quantia mensal e algumas ajudas, vez ou outra, como um caderno para que eu utilizasse na escola ou uma azeitonada na cabeça de alguma desavença de meu pai. Assim a vida vivia (outro apelido para algo que, no muito, era uma simples insistência em não sucumbir).

Foi na promoção que meu pai teve no emprego que fui conhecer o bairro dos bacanas. Por serviço ligeiro, meu pai, conhecedor das bibocas e de todos os caminhos que picotam a comunidade, foi agraciado com a licença de levar o pó pra fora da favela. Isso queria dizer que a bufunfa ia crescer, era muito maior a responsabilidade e o prestígio.

Peito estufado o pai me chama pra garupa da Harley, uma moto magrela de que ele muito se orgulhava. Enfiou o capacete na cabeça e escondeu o punhado de cânfora no tanque de sua Harley, saímos pipocando morro abaixo.

A comunidade tinha ficado cabreira depois que o caveirão começou a rondar a favela. Haviam fritado um meganha intrometido no microondas e eles fecharam o cerco. Mas depois que molharam as mãos dos federa as coisas acalmaram, demos sorte e não encontramos nenhum no caminho.

Feita a entrega voltamos quietos. O pai ficou de cabeça baixa por muito tempo. Acho que eu sabia o que ele estava pensando, era o mesmo motivo da minha mudez. A voz perde espaço quando os pensamentos enchem muito a cabeça. Percebemos uma coisa que não havíamos atinado. Neste perdimento de gírias e nomes que não eram nomes, nem nos demos conta de que "pessoa" era mais um. Um apelido para aquilo que éramos. Estávamos tão distantes daqueles seres que não podíamos ser chamados pelo mesmo nome. Nada do que tínhamos, criávamos ou víamos poderia se comparar com o que deles era. Agora entendemos o porquê de nunca chamarmos nada pelos nomes que deviam ter. Além de donos das coisas eram eles também os donos dos nomes.