19 dezembro, 2009

Michele

Michele! Esse é um nome inesquecível! Conhecemo-nos no balcão de um bar qualquer, aquela mulher magnífica sentada sozinha, sem demonstrar a menor timidez nem tristeza. Logo após perguntar, comentei que aquele era um nome de travesti e que não combinava com ela. Tinha certeza de que me acharia um babaca, viraria as costas e iria embora. Sei que, se tem algo que afasta as mulheres, é a sinceridade, já experimentei inúmeras vezes. Não que essa fosse a minha intenção, é que possuo uma prepotência infeliz de tentar ser o mais honesto possível, independente das circunstâncias. Poderia ter afastado-a para sempre, mas não foi o que aconteceu. Michele simplesmente riu e sentou-se ao meu lado, foi quando começou a me impressionar.

Isso foi há muito tempo, estou bem mais velho agora, o cabelo saiu da cabeça e foi para lugares indesejáveis como o nariz e orelhas, mas ela ainda gasta seu tempo comigo, não sei muito bem o porquê. Diz que gosta da forma que eu penso e que sente segurança na minha sinceridade, deixo-a calma. Bom, só sei que eu sou quem saio ganhando nessa relação, ninguém imaginaria uma mulher dessas em minha companhia.

No mesmo bar em que nos conhecemos, no mesmo balcão, ela fica calada, mexendo o gelo do drink incolor com o canudinho vermelho. Olho para os enormes cabelos negros, tão compridos que chegam a cobrir a bunda completamente. É realmente uma mulher magnífica, em toda extensão da palavra. Dou um gole em minha cerveja e digo:

-Não consigo entender. - Deixo a frase incompleta, tentando deixá-la curiosa. Logicamente ela percebe minha intenção, mas completa para não me deixar sem graça:
-Isso é algo difícil de você admitir, me deixou curiosa. O que é?
-Olha aquela moça lá no meio do salão, dançando.
-Mmmm. Bonita.
-Sim, muito. Mas veja o monte de homens patetas girando em volta. Isso é muito animal, muito ridículo. Os homens simplesmente atrás de buceta e as mulheres utilizando esse poder de forma errada, como se não tivessem a mesma vontade.
-Não temos a mesma vontade.
-Tá, eu sei, mas não seria nada de mais se vocês fossem promíscuas como nós. É uma questão sedução, poder. Com a camisinha e pílulas vocês poderiam ser livres, transar a vontade e ficarem tranqüilas. Mas não, vocês continuam com esse antigo instinto animal de que engravidarão e, por isso, precisam escolher o parceiro mais adequado para ser o príncipe eterno.
-Nem todas, chuchu.
-Odeio quando você me chama assim.
-Eu sei.
-É questão de prazer, percebe? Poderíamos estar todos na maior orgia, todo mundo seduzindo.
-A mulher não abdica dessa posição. Nunca deixará de mostrar que é ela quem escolhe.
-Mas não é questão de abdicar. Ela conquistará o real poder. Essa nova geração de atrizes pornôs para mim são o ápice da evolução.
-Nossa. Quero ver como você fará essa associação.
-Veja a Sasha Grey, não existe nenhum ser humano, homem ou mulher que não se apaixonaria por ela. É inteligente e puta. Não basta ser somente uma dessas coisas, já vi muitas garotas de programa com a mesma limitação de todas vocês. Elas, quando namoram, também procuram algum grau ridículo de fidelidade. Quer coisa mais idiota? Tem todas as possibilidades do mundo nas mãos, mas padecem da mesma mediocridade.
-Concordo com você. Mas como disse, é algo que está além do racional. Sossegue. Nós, putas, viremos com a evolução, mas somente daqui há alguns milhares de anos - E piscou para mim enquanto me puxava para e mesa de sinuca, era a nossa vez.

Erro a jogada. Ela tenta acertar a bola dois que esta do outro lado, praticamente deitando em cima da mesa. Um senhor no balcão ajeita os óculos tentando ver melhor o decote da blusa branca semitransparente, os bicos dos seios roçam a flanela.

- Você sabia que as pessoas se referem a você como crente por causa do cabelo? - Sabia que o comentário a incomodaria, é uma atéia convicta.
- Sei! E você sabe que acho isso uma merda. Povo sem imaginação com mania de ficar rotulando tudo.
- Você não pode criticá-los, faz parte do raciocínio humano essa tendência a catalogação. Todo pensamento científico é baseado em padrões. É algo que precisamos para antever situações, sabe como odiamos nossa própria falibilidade.
- É, tem sentido. Mas se fossemos tão simplistas, a ciência também não existiria. Não esqueça que a busca é justamente sobre o que foge do padrão.
- Mas para isso, primeiramente, precisamos ter um padrão.
- Olha aqui o seu padrão... - E encaçapou a bola oito com sua tradicional maestria.
- Você sempre foge do assunto quando está perdendo a discussão. - Olho encabulado para a quantidade de bolas que restaram na mesa.
- Você perdeu, chuchu! Paga a cerveja e para de chorar. Além do mais, eu já sei como acabar com essa palhaçada de crente.

Ela joga displicentemente o taco em cima da mesa sem se importar com a cara feia que o dono do local faz.

- E eu posso saber como?
- Amanhã, meu caro. Espere.

Paguei a conta e fomos embora. Eu de carro e ela de ônibus. Nunca me deixou levá-la em casa.
No outro dia eu ouvi os "puta que o pariu" masculinos a distância. Quando estiquei o pescoço para ver o motivo do alvoroço, a identifiquei. Ela passava pelos transeuntes com seu inconfundível e enorme cabelo balançando as suas costas e... me emociono só de lembrar... com uma microssaia ínfima, praticamente inexistente, estilo de roupa que passou a usar alternando apenas com shorts de mesmo tamanho. Chegou ao meu lado com um sorriso sem vergonha, me beijou a orelha e sussurrou:

-O que achou?

Não tinha palavras. Só sei que, a partir daquele dia, as mulheres choraram mais, os homens foram mais felizes e nunca, nunca mais ouvi ninguém chamando-a de crente.