Estava
fazendo arroz no fogão improvisado quando Gia me disse que havia lido
algumas das minhas anotações. Não havia lhe dado permissão para isso, já
estava começando a me fartar daquelas invasões de privacidade que
estavam se tornando cada vez mais constantes. Deixei-a falar. Comentou
que eu havia escrito sobre antigas mulheres que passaram em minha vida,
disse que alguns textos provavelmente se referiam a seduções atuais e
que ela não estava disposta a ser enganada. Que diferença da mulher que
conheci, liberal e independente, pensei. Falei que produzia contos e que
não é por estar escrito que eu havia vivido realmente aquilo, comentei
sobre a síndrome de Zuckerman citada por Rubem Fonseca em algum de seus
romances (e que provavelmente ele mesmo inventára) que era justamente a
confusão que os leitores faziam imaginando que toda peça literária é a
descrição real de algo que acontece na vida do escritor. Não disse mas
pensei, sobre o comentário de não querer ser enganada, de novo o amor
como expressão máxima do egoísmo (imperceptível para quem sente). Gia
balançou a cabeça sinalizando que havia entendido mas permaneceu nervosa
enquanto eu continuava a cuidar do arroz. Você não pode ter tudo, ela
me disse, ninguém tem. Escolha: eu ou o resto? Respondi que isso não era
escolha, o tempo que temos nessa vida é muito pouco, não existe como
optar por algo em detrimento do resto, independente do quanto se ama
essa coisa. Disse que ficava impressionado com o fato dela não perceber a
crueldade daquilo, que ninguém que tenha a mínima preocupação com a
outra pessoa poderia pedir o abandono do resto do mundo. Ela respondeu
que todo mundo é assim, que é como as coisas são e que eu que era
anormal. Respondi que realmente eu não sou todo mundo e que não
considerava a comparação com o resto da humanidade um ponto
argumentativo válido. Comentei que achava aquilo uma pena tão grande
pois tínhamos a possibilidade de ser um casal livre e feliz.
Relacionamento e liberdade para ela eram antíteses, situações
antagônicas e impossíveis enquanto, para mim, era a única forma de
relacionamento que poderia dar certo e que me permitiria ter. liberdade é
relativa, bradava, a minha noção de liberdade é diferente da sua.
Liberdade é eu não lhe impedir de fazer algo que queira e vice versa,
não existe variação de interpretação para isso, comentei cabisbaixo.
Acabei
queimando o arroz quando comecei a ficar triste imaginando o mundo
inteiro abdicando de tudo por uma simples questão de egoísmo e falta de
autoconfiança infantil, tinha começado a olhar para a hipnótica dança
das labaredas entre os tijolos e acabei esquecendo da panela. Comemos em
silêncio e fui me deitar, não percebi se e quando ela foi pra cama.
Fui
embora no dia seguinte em uma manhã fria mas muito clara. Via o céu
ainda deitado em minha cama e lembrei de quando cheguei em Formentera,
era o mesmo azul de claridade ofuscante daquele dia. Gia não estava mais
ao meu lado, já havia se levantado e partido para algum lugar que eu
ignorava. Seu lado da cama estava frio, indicando que estava ausente há
algum tempo ou sequer houvesse se deitado. Levantei-me e peguei um resto
de biscoito que ela havia deixado ao lado da cama, claro que o pacote
estava aberto e as bolachas murchas. Peguei uma metade já mordida, uma
assinatura daquela boca que tanto invadi com minha língua.
Cheirei-a cerimoniosamente e encostei a ponta da minha língua na beirada
dentada, lembrei-me dos nossos primeiros beijos e tentei sentir o seu
hálito matutino naquela metade de chocolate. Claro que não senti nenhum
gosto além do forte doce, mas aproveitei a nostalgia que aquilo estava
me despertando. Devorei o biscoito de uma vez, levantei-me e fui, sem
camisa, me espreguiçar do lado de fora. O contraste do vento frio com o
calor do sol em minha pele me fez encher o pulmão daquele ar que fora
meu companheiro por tanto tempo. Despedi-me olhando tudo em volta, como
sempre atentei aos detalhes que deixaria de ter a disposição diariamente
a partir daquele momento: as pichações, a roda d'água barulhenta, todos
os trincados decadentes daquela construção que havia invadido há alguns
anos e o imenso azul de mar e céu que tão bem me fizeram. Dei uma volta
pela parte externa da casa e pensei comigo mesmo que já era realmente a
hora de seguir adiante. Tirei de dentro da minha mochila um livro que
havia conseguido em troca de outros no sebo do bairro, Xaviera
Hollander, uma obra picante que já havia lido quando adolescente
garimpando a empoeirada biblioteca dos meus pais em Campo Grande no
distante Mato Grosso do Sul. Contava a vida real de um prostituta de
luxo e, segundo as descrições na parte de trás do livro, havia sido um
best seller em sua época. Peguei meu lápis e escrevi na primeira página
“para minha puta”, logo abaixo da marca afundada no papel que assinalara
o nome de um antigo dono e que fora apagada pelo sebo. Apesar dela não
ser mais a “minha puta” não queria me despedir da pessoa que havia se
tornado mas sim da pessoa extremamente importante que ela havia sido e
que, agora, eu deixava. Sabendo que sentiria uma falta tremenda de Gia,
coloquei o livro sobre o colchão de lençóis desfeitos e fui embora
carregado umas poucas peças de roupas e alguns livros.
Viciado em mar comprei passagem só de ida para uma outra ilha em outro país e, durante a viagem, acabei sabendo que o aeroporto onde desceria seria o mesmo onde aconteceu o maior acidente aéreo da história.