21 outubro, 2009

...do que infesta e não pode ser removido...



Não adianta, por mais que eu durma, acordo sempre mais cansado do que quando fui me deitar. Isso já acontece há vários dias, me sinto apodrecendo. Pelo menos consegui me afastar daquele trabalho idiota e inútil, agora posso dormir de 15 a 20 horas por dia.

Acabei de levantar e vim tomar o meu banho eterno, a sujeira da rua não sai facilmente. Sei que tenho anos de rua acumulados apesar de não por o pé na pra fora desde que consegui minha dispensa: suor, restos de pele minha e de outras pessoas, salivas, bafos, chuvas, cerveja, porra, catarro, merda, urina, esse ar imundo e esse infinito número de doenças. Passo álcool pelo meu corpo todo, quero me desinfetar. Já não sinto mais dor nos genitais quando faço isso, devo estar me acostumando. Olho para a garrafa de álcool e tomo um grande gole, sei que a sujeira me invade por todos os orifícios.

Agora, no banheiro esfumaçado pelo vapor d'água do chuveiro quente, olho o espelho embaçado tentando me identificar. Vejo o vulto borrado, apenas sei que sou eu porque ele segue meus movimentos. Passo a toalha de rosto no vidro e, mesmo assim, não consigo me reconhecer do outro lado. Para onde fui?

Olho meus cabelos crespos e enormes revoltos de cama, a barba de meses que se confunde com os pelos do peito que, por sua vez, é uma massa única e uniforme com o resto do meu corpo. Não passo de um animal coberto de pelos da cabeça aos pés. Os meus olhos e boca são pontos pequenos nessa névoa escura a que me converti.

A minha garganta arde pelo gole de álcool, abro a boca e me aproximo do espelho, preciso ver os germes morrendo. É quando percebo um movimento estranho no meu rosto, parece que todos os meus pelos estão se mexendo. Aproximo-me e vejo uma quantidade infinita de pequenos seres que povoam o meu corpo. Passeiam pelo mar escuro, submergem e vêm à tona. O asco toma conta de mim, mesmo com o banho quente, praticamente fervendo, e o álcool, permaneço imundo. Pego a navalha em um ato instintivo e começo o procedimento.

Inicio nervosamente pelos pés, tiro os pequenos pelos dos dedos. Vou ao peito do pé e, sem usar sabão em momento algum, subo pelas pernas causando diversos sangramentos. Isso não me importa. O que me dá mais trabalho é a virilha, meu ânus e as costas, onde uso de um contorcionismo que não sabia que possuía. Finalizo com a barba e cabelo e me admiro no reflexo. Ainda falta algo! Com a prática adquirida no resto do corpo, não encontro dificuldade e me livro rapidamente das sobrancelhas.

Agora sim. Jogo a garrafa de álcool por cima da minha pele lisa, a ardência é impressionante devido aos inúmeros machucados. Respiro fundo, finalmente me sinto livre.

Consigo esboçar um sorriso para o espelho, que não dura muito. O movimento que antes habitava meus pelos, agora cobrem meu corpo inteiro. Enojado, só percebo que havia pegado a navalha após já ter feito uma enorme incisão em minha testa e, arrancando a pele com as mãos, deixado um alvo crânio começar a surgir.