28 março, 2006

Amor de Skinhead

A promessa do seu corpo, com passos firmes ao atravessar a rua, vendia um ar decidido que comprei instantaneamente.

Olhei com mais atenção aquela figura que começava a destoar dos outros. Percebia que seus passos eram largos e diferentes, suas pernas obedeciam ordens próprias, independentes e dotavam seu caminhar com um aspecto engraçado, desengonçado. Aspecto esse que era desprezado por ela. Aliás, parecia que tudo o mais era desprezível, ela não se importava com ninguém, isso me encantou mais ainda.

Sentia os vapores ébrios retornando a minha mente pelada. Seria possivel? Imaginei que jamais me apaixonaria novamente.

Ainda é cedo, nem a conheço, mas todas as características que exibem o potencial da pessoa em impressionar são emanadas pelo corpo e podem ser percebidas a primeira vista. Nos primeiros momentos já se sabe o quanto aquela pessoa vai afetar sua vida. Da última vez que isso aconteceu eu soube, na primeira conversa, nos primeiros olhares, que ela foderia minha vida completamente.

E aqui estou agora. Já faz muito tempo, já tinha perdido as esperanças. Mas essa que atravessa a rua... pode ser.

Ela chega perto e pára ao meu lado.
Cumprimento com um menear de cabeça.
Ela sorri.

Merda. Estava tudo perfeito.
Ela não deveria ter rido dessa forma. Não demonstra segurança e indiferença. Não é assim que deveria ser. O sorriso fácil exprime uma abertura para minha investida que não deveria existir por enquanto. Não era para ela ser assim, a outra não era.

Jogo ela no chão e seguro seu pescoço com meu coturno.
Olho aquele rosto assustado antes de afundar o meu punho direito em sua boca.

Pronto. Sem os dentes da frente ela não rirá com tanta facilidade.

Agora podemos começar de novo. É, eu acho que me apaixonei.

"Eu tenho o mesmo segredo
Dos malditos solitários
Só a noite é minha amiga
A quem friamente confesso
A natureza noturna
Dos meus infernos diários"

20 março, 2006

O Previsí­vel Fim do Labirinto

Antônio pensou em respeito e calou, respeito não pode ser cobrado. De novo aquela sensação desagradável, todos bufões em torno dela novamente. O que mais o incomoda e que ela precisa deles, necessita dos giros e rodopios desses palhaços enrustidos encontrados em profussão pelos círculos por ela frequentados, sua infância perene exige toda aquela atenção.

O problema é que Tuca, ao contrário das outras, possuía o punhal específico que atravessava a armadura de Antônio construída solidamente de orgulho e prepotência. Tal punhal, feito do mesmo material, era habilmente manipulado por ela, que se deliciava quando o feria profundamente sem matar. O sangue grosso escorria do seu ego e molhava seus lábios quietos e, posteriormente, era bebido por ela.

Em busca da hipócrita e utópica idéia de equilíbrio e de que não deveriam se desviar dos sonhos individuais movidos pela paixão, acabaram se separando. Tuca se concentrara cada vez mais em seu trabalho e Antônio, numa de suas cada vez mais frequentes viagens, não retornou. Ainda se corresponderam por um tempo mas Tuca não suportava a ausência de Antônio e se traiu. Não, ela não traiu Antônio, ainda o amava, mas a companhia de seu amigo acabou sendo mais constante, estava fraca. O amor não resistiu à impressão de descaso causada pelo distinto seguir de rumos que cada um tomou.

O sangue jorrado do coração ceifado foi muito pior do que as pequenas torturas resultantes do lapidar de arestas que o relacionamento requeria, mas o orgulho dos dois era demasiadamente grande para perceberem a puta estupidez da decisão.

Antônio retornou ao alto do antigo pedestal de inacessibilidade e se imaginou, novamente, dono da situação e de seu destino. Trágico engano aquele, as mentiras caíram seguindo o lento folhear do calendário.

Não sonhava mais, o maxilar travara para qualquer palavra amena. A certeza da dor o privava de qualquer tentativa. Amaldiçava o destino que o conduziu à solidão perene.

Concentrava-se no ritmado ranger que sua cadeira de balanço provocava sobre o velho assoalho de madeira. Sua companhia eram seus livros, velhos discos e garrafas vazias de quase de todos os tipos de destilado que apinhavam o ambiente. A peculiar decoração (na realidade a falta dela) evidenciava seu passado de seguranças estereotipadas. Suas idéias e conceitos se mostravam toscos e desprovidas de personalidade quando, nostagicalmente, os imaginava entoados pelos sangrentos lábios da cruel companheira de outrora.

A verdade se perdeu nas linhas do acaso, a culpa existe mas não se pode identificar de quem, a traição aconteceu mas não se pode ter certeza de quando.

E o que mais incomoda, o que pressiona as lembranças a adquirirem um peso sufocante, esmagador, é que tudo poderia ter sido diferente.


"Eu uso óculos escuros, pra minhas lágrimas esconder"

10 março, 2006

He's got the whole world in His hands

Contemplo as mãos.
Alvas, sem calos ou pelos, dedos longos. Mãos de pianista minha mãe falava.
Mãos que já deram prazer e ofenderam. Mãos que já acariciaram seios e clítoris, secaram lágrimas e fizeram chorar.
Mãos que já fizeram gestos obscenos e se chocaram violentamente contra rostos, criaram coisas do nada e destruiram.

Mas, apesar de tudo, elas sempre foram desprovidas do poder que agora têm.
Na verdade nunca almejaram o poder.
Por isso quando as contemplo seguindo braços acima, percebo que ainda estão ligadas ao meu corpo mas não consigo sentí­-las como parte de mim.

Sinto como se elas fossem enxertadas, fizessem parte de alguém que decide, que participa. De alguém "intenso".

Observo esse outro me observando, me criticando. Percebo que ele me julga e condena. Para ele não existe meio termo, para ele existe uma verdade absoluta, uma sentença.

Rio assustado sem tirar os olhos das mãos. Percebo as unhas roídas, as dobras, as pintas e todas as características mí­nimas que as tornam únicas. Viro e observo de outros ângulos, afasto e aproximo do meu rosto. Veias, carne, peles e unhas. Um mecanismo complexo e bonito.

Uma está aberta e a outra fechada.

O poder vem de uma extensão da mão fechada. Do extremo. Onde acaba a carne e se torna metal. O metal acaba e se torna pólvora. Onde a pólvora acaba e se torna solução.
Sinto o frio pressionando minha têmpora. Fecho os olhos porque não há mais nada para ver.

Ainda ouço o estampido começar e, imediatamente, cessar.

Nunca toquei piano.

07 março, 2006

"Gripe aviária em gatos aumenta preocupação"
Yahoo, 07/03/2006

Verdade, também me preocupa. Quem perceber algo estranho nesse enunciado ganha uma galinha resfriada.

03 março, 2006

Da beira que se habita

Jaime ia em direção ao serviço pensando facas. Seguia seu costumeiro caminho que passava por um pequeno bosque enquanto se concentrava em tentar esquecer.

Sua mente estava torta, comum já que procedia uma ébria noite. Flashes de bizarros acontecimentos são disparados à todo momento e Jaime, inutilmente, tentava anulá-los.

Ele cantava músicas aleatoriamente para tentar não lembrar, falava sozinho, cada vez mais alto, tentando suplantar aquela voz irritante que berrava dentro dele e com quem, constantemente, discutia.

Apressa o passo, acha que com a velocidade poderia se afastar de seus fantasmas.

Falando sozinho e andando depressa, Jaime atraía olhares desconfiados. "Louco" sentenciam no bater do martelo comum feito da soma de seus medos. Vozes distantes o mediam. Vozes tão distantes e inúmeras quanto corretas, como sempre é a unanimidade. Vozes tão ridículas e inúteis quanto burras, como sempre é a unanimidade.

Jaime habitava a beira de um precipício vertiginoso e o vento emanado pelo forte hálito de suas não convicções o embalava e, perigosamente, aumentava. Ele percebia a iminência da loucura daquelas profundezas como algo tão palpável a ponto de sentir seu gosto. A clareza da realidade fugia ao seu senso de forma que as coisas e sensações não conseguiam adquirir a consistência suficiente para serem definidas como tais. Tudo era de matéria gelatinosa, tudo poderia desmanchar a qualquer momento. Toda a eternidade de sua vida (não se lembrava do começo, poderia não haver, existira sempre. E poderia não ter fim, nunca tinha morrido) poderia não ser nada.

Não interessa nada que não provenha dela, jaime agora, pensa dúvida. Sangra a boca de saudade e esvaece seus espectros. Sente sua presença de uma forma tão real que o assusta a ponto de procurá-la em volta.
Não queria pensar tanto nela, mas ele não é forte. Tudo que é está diferente perante ela. Sente vergonha do que foi, dessa eternidade insistente da noite passada.

Mas, pobre Jaime, ela nem sabe seu nome.

"...e cada qual no seu canto e cada canto sua dor..."