29 maio, 2006

A escadaria

Descansado e de pensamentos virgens, não olha os degraus futuros, se concentra apenas no iminente. Aqui, no eterno presente, começa sua jornada pela escadaria tortuosa e de comprimento indefinido. Não é difícil, cada movimento é novo, distinto. Cada passo único em sua pobre percepção inexperiente. Começa a construir sua realidade dispersa e distante. Ele basta a si mesmo, se completa. Todo auxílio externo necessário à sua sobrevivência é doloroso. A comunicação com os outros sempre é difícil. A engrenagem que acolhe a todos o deixa órfão. Aqui se assusta com facilidade. Tenta passar despercebido pela vida, tem medo da reação das pessoas e procura não perturbá-las.

Sobe. Não é só mais o mero obstáculo presente que a escada representa. Cada degrau acrescenta um peso dos outros decorrente. O que é agora galgado, não pode mais se resumir a si só, a força consumida para até ali chegar o torna extensão direta de um movimento quase único de todos anteriores a ele. Seu tamanho e distância o mostra como seguro e decidido, percebe que não precisa de coragem para intimidar e se protege em sua covardia inerente.

Chega agora então ao fim. O esforço fica insuportável. O peso de sua vivência o flagela. Seus pecados e vitórias são demasiados para aquela consciência de ossos fracos. Não cede ao cansaço até o último segundo, apoiado por uma força consequente do orgulho imponente que faz questão de ostentar. Não resiste. Tal qual o enigma da esfinge estica sua terceira perna ao agarrar o polido corrimão de cobre. Não se mantém sozinho. A ajuda sempre escorraçada agora é necessária. O apoio de tudo que construiu e afetou agora será cobrado. A dúvida o assola e arranca uma lágrima que ondula por suas numerosas rugas. O fim da escada chegará, o que o preocupa é se subirá o que resta de forma digna.

26 maio, 2006

Crash

Não sou de escrever sobre filmes ou músicas, não sei muito o porque. Talvez por ter me tornado ranzinza antes do tempo e não gostar de nada. Só sei que meu gosto não serve de referência, é algo de ácido e bizarro. Talvez seja também por que eu não sei o porque eu gosto ou não de algo, simplesmente gosto e pronto. Não tenho a arte da Clara que tem uma postura definida com relação a tudo, mudo muito meus gostos em pouco tempo. De qualquer forma me predispus a comentar um filme que eu gostei.

Assisti o filme cheio de preconceitos. A prepotência de ser homônimo a um filme antigo que gosto muito me irritou. Mas o filme justamente trata disso, de preconceitos.
O que me impressionou foi a falta de maniqueísmo do filme, algo que não me lembro de ter visto antes, postura esta, que o começo do filme disfarça. Já esperava assistir um filme cheio de rotulações e dramático sobre os coitadinhos do bem e os bandidos malvados, mas me surpreendi. Ele mostra, de uma bela e intensa maneira, como todos somos preconceituosos e assumimos posturas bem diferentes de acordo com a situação. Nenhum dos personagens é óbvio, cada um mostra ser capaz de ser odioso ou maravilhoso igualmente ao outro a que odeia, e isso é de uma honestidade inesperada vindo de algo fora dos livros. Esse lado obscuro existente em todo ser humano, tão bem retratado por Dostoievski (e por isso que eu o adoro) é que faz esse filme tão interessante.

25 maio, 2006

Comendo o passado nas linhas que deixaste de rastro

Como se já não bastasse pensar em ti o dia todo, eu te vejo. Teus retratos não se resignam em ficar espalhados pela casa e na tela do computador, me acompanham pela rua, pelo trabalho, violentando minha pobre retina que já está cansada de tentar te ver em outras putas.
Como se já não bastasse te ver o dia todo, eu te leio. Me pego remexendo bites antigos dessa história. Meus dedos olhos e alma imerso nestas emoções que me fodem.
Revejo palavras que alfinetam e frases que acariciam. Visito alguns coadjuvantes valentes e os muitos rivais, muito mais numerosos e belicosos. Ah, quantos rivais.
Feliz me vejo dentro dessa história que fere. Fere pela intensidade, fere pela beleza, fere pelas interrupções, pelas intromissões, pelos não convidados, pelas traições.
Me perco nas linhas que se alteram conforme nossa vida se desenrolava. Ódio e amor tão entrelaçados. Ciúme e confiança numa dança de seduções e aprendizado.

Eras tão deprimida, criança. Eu era tão confiante, babaca.

Nós mudamos.

Nunca estiveste tão longe do suicídio, já eu nunca tão perto.

"Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu"

22 maio, 2006

Sangrado Coração


Notou imediatamente a fraqueza do orgão em sua presença. Nesta atípica situação tateou o dito cujo com sua mãos finas. Moldava-o ao seu bel prazer. Futucou, futucou até que o músculo, numa desistência voluntária, cedeu vazando. Qual represa segurando a pressão de um imenso rio que ao menor furo impele suas águas à passar toda ao mesmo tempo pelo mínimo orifício conduzindo-a a almejada liberdade, jorrou o sangue com a força de sentimentos represados e inpensados.

Mas ela não era má, riu do inesperado da situação como uma de suas artes que era acostumada na infância, suavemente acariciou o órgão procurando a ferida e com o seu dedo preencheu o furo mortal lá permanecendo. Desse dia em diante qualquer ausência, pelo mínimo de tempo, deixa o vão aberto e entrega o pobre coração à morte exangue.

"I want to be a good woman
And I want, for you to be a good man.
This is why I will be leaving
And this is why, I can’t see you no more.
I will miss your heart so tender
And I will love
This love forever
"

(Cat power)

15 maio, 2006

Como se fuma uma dor


Da ponta do charuto ainda sai um resto de fumaça dançando pelo ar. Esvaece. Baila.
Ela me disse que charuto não se apaga, não se espreme e sufoca a brasa, deixa queimar sozinho no cinzeiro que ele, sem o impulso combustível do tragador, irá inevitavelmente apagar.

A agonia que a irresistível assimilação que essa cena traz de minha vida espreme minha cabeça como um invisível torniquete que, a cada segundo dá mais uma volta, aumentando a pressão dele decorrente.
A falta de impulso e estímulo apaga o que ainda me resta de ânimo. Observo o charuto parado no cinzeiro e me comovo. “Nunca sinta pena de si”, pensava.

Não, não é pena, é ódio. Que situação aquela. Que culpa infeliz a de não conseguir perceber nada em torno que valesse a pena, nada que aqueles estúpidos e felizes coadjuvantes extraem da ignorância.

Não há possibilidade de alguém racional perceber alguma coisa de interessante numa vivência vazia, que as pessoas tentam sofregamente preencher com ilusões teológicas tentando achar uma desculpa para o seu próximo respirar.

Gangrenado de tédio, meu ânimo até disso se esquece. Estou a quanto tempo sem respirar? Um segundo? Minuto talvez? horas? Desde o “nunca mais” seguido por um ríspido bater de porta? Talvez desde sempre.

Inevitavelmente a lembrança me fez puxar uma nova leva de ar que me deu mais eternos minutos para pensar. Afundado na poltrona observo a fumaça sair pela janela. Está se apagando.
Numa ironia maldosa pego o toco esfumaçante e coloco na boca. Sorrio porque sei que não vou contribuir com o oxigênio necessário para interromper aquela decadência. Apenas ameaço, finjo que vou tragar e desisto. Sei que tenho o poder, mas não a vontade.

Uma lágrima nasce do olho irritado e morre no irônico sorriso de minha boca. De repente a porta se abre.

É Ela. Ela voltou.

Toda merda que eu pensava antes some junto com o final da bituca do charuto que, instintivamente, absorvo numa única tragada. Meu peito arde. Pela fumaça? Por causa da volta dela? Não sei distinguir as duas dores. Antes que ela esvaeça como a fumaça eu a aspiro inteira com minha boca e sinto todas as palavras do mundo inflando meus pulmões com o que preciso para o resto da vida.

Vícios, e quem vive sem eles?

08 maio, 2006

Apetitosos olhos verdes


A tormenta pegou de surpresa aquela pacata vila onde a distância impedia até a chegada do vento. O vilarejo vivia calmo como se o ar tivesse a espessura de melado. Esta situação, provocada pela densa atmosfera, era consequência direta do exaustivo calor que lá habitava, já que o vento, senhor imperioso de outras bandas, era vencido pelo cansaço que o consumia devido a distância que separa o povoado de qualquer outro local habitado. Algumas vezes uma pequena brisa se limitava a chegar na fronteira e, por lá mesmo, fazer pequenas piruetas como que tentando ganhar novo ânimo, mas logo morrer.

Seus habitantes se acostumaram a conversar com calma já que a fala de um, quando separada por certa distância, demorava a chegar aos ouvidos do outro. A voz percorria devagar o espaço, rolava preguiçosa, chegava rouca e sonolenta ao ouvido de destino. Por isso não era possí­vel uma conversa afoita naquelas cercanias e raras eram as discussões acaloradas.

Tão impressionante como a velocidade que se formou, foi a violência com que a tempestade chegou. O dia escureceu tão rapidamente que os habitantes se apavoraram imaginando estarem sendo assolados por uma cegueira coletiva. O ar se dissipou golpeado pelos gelados pingos que violentamente se chocavam contra os desavisados transeuntes. A correria foi geral. Na procura de um abrigo crianças choraram, velhos tombaram e senhoras brigaram. Muitos procuraram o bar do Tomás, o único boteco ali existente, já que as árvores não demonstraram ser uma proteção eficiente. Tomás não teve outro jeito senão acolher a multidão espavorida. Lá os moradores especularam sobre o caráter místico da tormenta.

Trovejava forte, cada estampido reforçava o choro apavorado das crianças. Um trovão se destacou dos demais pela sua permanência. Começou suave, distante, e foi aumentando devagar. Só quando dois feixes de luz transpassaram a cortina de grossa chuva é que os habitantes perceberam que se tratava de um carro que se aproximava. Automóveis por ali eram raros, na verdade só havia o da polícia que, por falta de gasolina e serviço, estava encostado há dois anos no fundo da delegacia.

- Nada de bom pode sair dessa chuva do demônio - sussurrou Tomás enquanto passava o surrado pano no balcão.

O carro rodeou a praça e estacionou em frente ao casarão das rosas, uma mansão tão antiga quanto o próprio vilarejo, somente lendas restaram do local que, apesar de vazio, era protegido por um enorme portão de ferro trancado por um cadeado. O local era menos frequentado do que o cemitério pois corriam histórias de que era mais assombrado que ele. Era todo construído de pedra e a vegetação o escondia quase que inteiramente, subia pelas paredes e serpenteava pelas grades do portão. O carro distava além do que os olhos poderiam distinguir naquela estranha tarde e só contemplou a multidão curiosa com um vulto esguio que saltou, brigou alguns segundos com o enferrujado cadeado do portão e sumiu porta adentro.

Nas mentes quietas e acostumadas com a ausência de acontecimentos aquilo, juntamente com a estranha tempestade, acionou pensamentos adormecidos pela falta de uso. Nada acontecia naquelas paragens, fora os naturais nascimentos, mortes e casamentos. A tempestade caiu durante toda a noite, obrigando os refugiados a se ajeitarem na melhor posição possível e dormir ali mesmo no bar.

O dia seguinte amanheceu limpo, de uma claridade notável. Tomás abriu as pesadas portas do estabelecimento e acordou a todos com a bela noticia. Ainda sonolentos os moradores se prostraram em frente ao bar contemplando o céu claro como se tivessem temido nunca mais vê-lo. Apenas uma teimosa e pequena nuvem negra permanecia insistente no horizonte como uma lúgubre assinatura.

As rotas mentes, limpas pelo clarão do sol nascente se lembraram do estranho que lá chegara. Foram todos, curiosos, examinar aquela mansão há muito abandonada.

Olharam o Jipe que regurgitara o visitante com desconfiança, placa de São Paulo, montes de livros escritos em língua estrangeira sobre o banco e muitas malas no bagageiro. Não se lembram de nenhum forasteiro por aquelas bandas, a estrada era caminho único só de ida. Corajosos adolescentes por ela se aventuravam em busca das promessas da civilização. Só um retornou, o filho de Tomás. Construiu o estabelecimento para garantir um rendimento para o pai e voltou para a cidade onde havia progredido. Neste retorno o filho de Tomás trouxe de bagagem muitas notícias estranhas. Um mundo inimaginável foi exposto à temerosa mente supersticiosa dos habitantes. Por isso a ofegante respiração de todos não conseguia abafar as fortes batidas que emanavam de cada coração.

Mas, para descontentamento geral do povoado, nada de impressionante aconteceu, naquele dia nem nas semanas que se passaram. Ninguém viu o morador da casa sair. Ele provavelmente tinha levado provisões, mas essas iriam acabar e, inevitavelmente, teria que dar as caras no mercado.

A cidade voltava, pouco a pouco, ao seu sossego costumeiro quando aconteceu a tragédia. Tomás, como sempre, passava o pano pelo balcão quando começou a ouvir gritos distantes. Carmem corria apavorada pela rua da cidade clamando aos céus por socorro. Logo uma multidão de curiosos seguia a jovem que entrou correndo na delegacia. Carmem era uma das mais bonitas raparigas que trabalhavam na casa verde da Ramona, o prostíbulo onde os homens iam saciar sua sede de infidelidade e sossegar seus desejos de delicadeza, já que o árduo trabalho na roça tornara as mulheres tão embrutecidas quanto eles.

No meio de gestos bruscos se ouvia um ou outro palavrão na sala fechada do delegado. Carmem atropelava as palavras enquanto suava aos píncaros pelo extremo agito. O delegado a tudo ouvia atentamente com um olhar mais abasbacado que de costume, era sensível a gravidade da situação.
Carmem, seguida pelo delegado, que por sua vez era seguido pelo resto do povoado, saiu da delegacia tomando o rumo do bordel que, por coincidência, estava na mesma direção da pequena nuvem negra que restou da tempestade.

Ramona, a dona, estava deitada de costas na extensa ravina gramada dos fundos da casa que servia de quintal. Enquanto Carmem soluçava sem conseguir tirar os olhos de sobre o corpo inerte, o delegado verificava o pulso com os dedos pressionando as artérias do pescoço de Ramona.

- Ela está morta!

A sentença não foi recebida com surpresa pelos presentes, o mais grotesco da cena não deixava dúvidas do veredicto: haviam extirpado os olhos de Ramona.
O mórbido assassinato mexeu com a imaginação do povoado.

A discussão se tornou mais acalorada quando Tomás se lembrou de um caso contado por seu filho sobre estrangeiros que visitavam o interior em busca dos olhos de ví­timas indefesas para vendê-los aos cegos ricos de seu paí­s. O filho contara que existiam grandes companhias estrangeiras que visitavam pequenas cidades onde procuravam moradores sozinhos e despreocupados, imobilizavam-nos e, sem sedativos nem nada, arrancavam-lhes os dois olhos e, vez ou outra, um fígado ou coração.

- Os estrangeiros cobram fortunas por cada par de olhos - explicava Tomás para os estupefatos ouvintes.

No começo a maioria ficou quieta, após um minuto começaram os murmúrios contra a ideia estapafúrdia. Josué, o farmacêutico, dizia que achava tudo muito improvável, sua voz ganhou algumas repetições em tom bem baixo, quase inaudíveis. Um berro recoloca a posição geral dentro dos trilhos. Bastião, um padre que parecia mais velho que o vilarejo e o casarão, dizia que deve ter sido exatamente isso que aconteceu. Os infiéis estrangeiros, que tinham pacto com o diabo estão a roubar a pureza da alma dos habitantes através da extração dos olhos. Apoiados pelo tom de voz alto do ancião todos já repetiam suas palavras, o tom de sugestão foi se perdendo no retumbe ao contrário da violência das palavras que ganhava força cada vez que a sentença era repetida. Tudo se esclarecera. Não sobravam mais dúvidas e algo tinha que ser feito.

Sem ninguém tomar iniciativa rumaram para o antigo casarão. A turba parecia impelida por uma consciência própria. Chegaram no grande portão e gritaram.

A resposta foi silêncio.

Arrombaram o enferrujado portão. Logo em seguida a porta de madeira maciça também cedeu. Numa enxurrada humana percorreram todos os cômodos e encontraram o pobre forasteiro encolhido num canto do banheiro, tremendo, articulando palavras que ninguém entendia. O estrangeiro alçou vôo, braços inamistosos o levantaram com violência no ar. Apertavam-no com uma força raivosa.

Levaram-no ao descampado onde Ramona se encontrava. A nuvem solitária flutuava acima deles. O povoado demonstrou uma criatividade excepcional em inventar vários tipos de torturas que aplicavam ao viajante. Expurgaram toda culpa e ódio de suas consciências no infeliz.

Quando não sobravam mais forças para castigar o corpo despedaçado do cadáver, a turba se dissipou. Um a um foram abandonando o lugar, dando tapinhas nas costas um dos outros satisfeitos com a justiça feita. A última a sair foi Carmem.

- Assim esses estrangeiros aprendem a não achar que nós aqui do interior somos idiotas.
E cuspiu sobre o cadáver.

Ainda se via o esguio vulto de Carmem sumindo na distância quando uma sombra negra, escondida até então, tomada de coragem começa a rodear o corpo. Numa espiral descendente ele pousa suavemente sobre a pálida face do estrangeiro.

O corvo observa intrigado aqueles olhos de uma coloração diferente de todos os que já viu. Por um momento se hipnotiza com os reflexos que as duas esferas produzem. Lindos. Parecem fitá-lo, provocando-o. Em rápidos movimentos, contrariando a atmosfera que voltava a ficar espessa, o pássaro se banqueteia com aqueles dois apetitosos olhos verdes, os de Ramona não foram suficientes para o saciarem.

E o corvo foi-se embora do vilarejo. Bem devagar, pois não era necessário um bater de asas muito frenético para sustentá-lo naquele ar grosso. Sumiu no horizonte seguindo a pequena nuvem que carregava junto com ela os medos de mudanças que tanto castigara as turvas mentes do pequeno povoado.

Das minhas limitações

Meu colchão é pequeno para o que quero fazer contigo,
meu talento insignificante para te impressionar como gostaria,
minhas paredes são finas para abafar teus gritos,
meu vocabulário é limitado para descrever o prazer que me dás
e, mais que tudo, minha vida é muito curta pelo tempo que eu quero passar do teu lado.