22 dezembro, 2006

Dessensibilização

O acaso não poderia ter sido mais irônico, juntou nossos caminhos justamente naquele lugar que presenciou tanto da nossa história, a velha feira decadente.

Te olho de frente e dou um sorriso.
-Situação engraçada não é?
Você não responde, treme um pouco o queixo e eu vejo uma lágrima lutar bravamente pra nascer no seu olho e que você segura e não deixa escapar.

Nesse momento eu me lembro das minhas compridas aulas de neurociencias. Lembro da propriedade de dessensibilização dos neurônios, onde um impulso constante aumenta a resistência à um possível novo estímulo. Isso é facilmente perceptível quando damos uns tapinhas na região que receberá uma injeção para que a área fique dormente e não se perceba a entrada da agulha.

Acho que me identifico com isso, fiquei dormente. Cansei. Definitivamente cansei.

Olho aqueles olhos que me admiravam. Olho aquela boca. Boca que, enquanto proferia palavras de amor eterno à mim, enroscava a língua em outros homens em uma quantidade de vezes e variações por mim desconhecidas.

De qualquer forma isso não faz diferença agora, não conseguimos dizer mais nenhuma palavra um para o outro. O engraçado é que, antigamente, por mais que falássemos, nunca conseguíamos dizer tudo que queríamos. Gastávamos todo o dicionário de nossas bocas e sempre faltava algo a ser dito. Agora só o silêncio. Foi o que restou. O silêncio apagou nosso vocabulário e a indiferença digeriu nossa vontade.

Ela olha para o chão e aponta uma casca caída de algum ferimento completamente cicatrizado.
Fico intrigado e pego a casquinha do chão, enquanto isso ela dá as costas e vai embora.

-Estranho, não me lembro de ter me machucado.

07 dezembro, 2006

No olho do furacão

Olho impotente aqueles olhos assustados. Nunca me acostumo com elas, pessoas arrastadas para o furacão e que não fazem parte dele. Esse furacão desenhado com violência, formado pelo movimento perdido de pessoas vis, baixas e sujas e que cercam o mundo que tenta ser correto e direito. Esse furacão criado na marginalidade, que carrega inocentes e as vezes os estraçalha, dança e se alimenta em volta dessa sociedade que não o entende nem é entendida por ele. Um furacão formado por atos falhos, ou seja, discursos bem sucedidos.

Existem algumas pessoas que não querem mais fazer parte disso e tentam descer desse rodopio, mas muitas chegam a fronteira, são puxadas novamente e não são fortes o suficiente para resistir. Talvez não seja questão de opção, essas pessoas são assim, nascem para ser furacão e, apesar de não gostarem, arrastam outros pra sua lama.


"O que você fez, daquilo que te fizeram?"
Jean-Paul Sartre

28 novembro, 2006

Já volto...

Ainda com os lábios colados na boca de nando ela perscruta a boate inteira com aqueles olhos apertados que fazem marmanjos chorar. Nesse rápido movimento ela consegue filtrar a maioria das pessoas que a interessam. Alguns a atraem pela beleza, outros pelo jeito de se moverem e outros ela nem sabe por que. Todos fazem parte da mesma massa humana que ela precisa seduzir, que precisa sugar. Ninguém tem nada em particular que a interesse, todos são apenas reflexos de sua própria pessoa, seu alimento gordo de todas as noites.

Ela ficava intrigada em como a aparência de independência, que a promiscuidade assumida concede, é capaz de seduzir tão intensamente e tão prontamente todo o tipo de pessoa. A promiscuidade era um ponto de honra para ela, uma questão resolvida. Sempre tinha se indignado com aquela postura ridícula, desnecessária e hipócrita que, para ela, vinha direto do cristianismo, a insuportável monogamia.

Ela sentia que assumia sua humanidade na promiscuidade, sabia que todos eram assim, não via sentido em negar tal impulso. O defeito em tudo e todos é simplesmente a mentira. As pessoas não traem porque trepam com outras, mas sim porque prometeram que nunca iriam fazê-lo.

Depois de todas as revoluções que sua língua fez na boca de nando ela afasta o rosto e o olha fixamente. Dá um sorriso e se afasta com um "já volto" em direção ao bar. Ele ainda tenta pensar que ela irá apenas buscar outra bebida, mas os dois sabem que ela não irá voltar.

15 novembro, 2006

"Então, pela primeira vez, Maca sorriu para mim, e juro que conheci o que provocou, caralho, a queda dos anjos. O que provocaria, maldita a hora que nasci, o desespero que está me queimando. Soube aquela noite que, depois de ter dormido com centenas de mulheres, eu era virgem. Conheci, maldita hora em que meus pais se misturaram, conheci que o céu e o inferno têm a mesma porta morna, e que se pode viver dentro de um relâmpago."

14 novembro, 2006

líquido fecundante produzido pelos órgãos genitais dos animais machos

E o que será que passa na porra dessa tua cabeça?
E o que será que se passa na porra do teu coração?
E o que percorre a porra do teu corpo?
E de que porra estás falando?
Talvez a resposta seja simples,
provavelmente é só isso,
simplesmente

porra.

09 novembro, 2006

Argumento único

"...e cada qual no seu canto,
em cada canto uma dor..."




Há tempos Getúlio não sabia o que era uma boa noite de sono. Médico respeitado, era considerado calmo, afável e competente por seus colegas e pacientes. Apesar das inegáveis qualidades, cultivava poucas amizades pois o contato que mantinha com outras pessoas era travado dentro do hospital e era inteiramente profissional, ninguém conhecia o Getúlio que existia além daquelas portas.


Sua esposa, Tereza, não trabalhava, ficava o dia inteiro em casa imaginando o que o marido estaria fazendo. E sua mente viajava. Em seus delírios, Tereza via Getúlio em bacanais dionisíacos dentro da sala de cirurgia, imaginava traições espetaculares com conivência de seus amigos. Via tudo e todos relacionados com seu marido, armando um cinematográfico complô contra ela.

Depois de extensos e cansativos plantões, Getúlio chegava em casa. Nesta hora que o suplício começava. Ele sempre mantinha uma ponta de esperança de que Tereza poderia estar dormindo ou ocupada com alguma outra coisa para que ele passasse despercebido. Mas isso nunca acontecia. Tereza transformava cada segundo de atraso em uma eternidade de reclamações despejadas no ouvido de Getúlio.

Getúlio, mesmo precisando acordar cedo pra trabalhar no outro dia, sabia que o melhor a fazer era não contrariá-la e ficar ouvindo, pois, para Tereza, o fato dele não gostar de ouvir as suas reclamações era a prova de seu desamor e descaso com o relacionamento que estava tentando salvar. Tereza falava e Getúlio se esforçava para entrar em um tipo de transe, um entorpecimento. Ele nunca entendia o que ela falava, tão depressa era a enxurrada de reclamações. Ela começava perguntando sobre o atraso e seguia escarrando seus delírios. Quando acabavam os argumentos, ela prosseguia repetindo os discursos feitos na noite anterior e assim sequencialmente. A voz de Tereza ia sumindo conforme Getúlio se concentrava em algo. Seu sistema era o seguinte: começava a observá-la atenciosamente em busca de alguma coisa que chamasse a atenção, podia ser um botão da blusa que, conforme a posição, produzia bonitos e fugazes reflexos, ou os brincos que giravam caóticos sob suas orelhas. Certa noite, Tereza notou seu olhar vago atravessando-a e achou que Getúlio estava focando a televisão que estava logo atrás dela..

- Tá interessado na televisão? Então vai lá. Vai assistir ao filme que tanto te interessa.

Getúlio realmente acreditou que Tereza estava falando sério, sorriu e começou a assistir ao filme. Infelizmente só deu tempo de pegar o intervalo. Logo Tereza, que o fitava com os olhos apertados de raiva e o pé a bater no chão, pulou ferozmente em frente à televisão e começou, novamente, a esbravejar:

- Viu como eu tenho razão em reclamar de você? Você não me dá atenção. Me sacaneia o dia inteiro e quando eu, que quero salvar nosso casamento, quero discutir a nossa relação você ignora.

Então Tereza continuava suas lamentações de onde tinha parado.

E assim corriam os dias e noites de Getúlio.

Numa bela noite, Getúlio estava procurando algum objeto para distrair sua atenção enquanto Tereza falava. Um reflexo prateado lhe chama atenção. Era a lâmina de seu bisturi que estava na mesa ao alcance de seu braço. O reflexo brilhava diferente, estava mais bonito porque além da lâmpada, Getúlio via refletida a possibilidade de uma liberdade e paz antes inimaginável. Para não atrapalhar o discurso de Tereza, seu golpe foi único e silencioso. A lâmina afiada separa a carne, pele e veias da garganta de Tereza. Ele, calmamente, volta a sentar e percebe que Tereza continua a reclamar. Agora reclama de falta de ar, que não quer morrer, mas Getúlio continua a não entendê-la direito. Ele se lembra que precisa achar alguma coisa para desviar sua atenção, olha em volta e, de repente, abre um largo e franco sorriso. Ele nunca tinha achado algo tão interessante quanto as lindas bolhas de sangue que voam da espuma que sai do pescoço de Tereza toda vez que ela tenta gritar.

27 outubro, 2006

Conversão

O passo era afoito, desviava dos transeuntes com uma agilidade impressionante adquirida pelos inúmeros anos de correria pelas calçadas. O capote esvoaçante e o chapéu enterrado na cabeça o protegiam da irritante garoa e do frio que, este ano, chegou mais cedo que de costume.

Em um momentâneo descuido o vento leva seu chapéu. Ele olha para o céu e sente a água fria correr por seu rosto naquela manhã, sorri.

Seus ermos passos são interrompidos pela debandada de uma multidão que sai de uma enorme porta. Ele pára e observa a turba bem vestida escoando pelas ruas até sumir por completo.

De repente algo chama sua atenção, ele escuta ... é grande e avassalador, algo que seus pensamentos há tempos anseiam: um enorme e gigantesco....
silêncio.

Ele olha para o interior da grande porta de onde sairam aquelas pessoas e percebe que se trata de uma igreja.

O ateu ri desdenhoso do hipócrito destino, a idéia de um deus nunca lhe interessou, sempre lhe pareceu patética. Nunca sentiu necessidade dos cômodos remendos divinos que se usam para tapar os buracos deixados pelo conhecimento. Mesmo assim ele entra, precisa daquele silêncio.

Senta no banco vazio do imenso salão semi-iluminado e observa com um sorriso irônico parcos beatos comprarem sua paz com um toco de vela. Estira os braços sobre o banco e encara o ídolo sofredor que imita sua posição e lembra que sempre admirou suas idéias e, provavelmente, as cumpra muito mais freqüentemente que esses babacas teístas.

Neste instante o silêncio é interrompido por um estridente gargalhar de alguém que acaba de entrar. Ele se vira e vê uma menina de uns treze anos que lhe dá uma rápida olhada seguida de uma piscadela com seus enormes cílios. Estava vestida com uma minissaia vermelha, seus cabelos negros e compridos estavam presos em um rabo de cavalo que pendulava atrás de sua cabeça. Ruma direto para o confessionário enquanto o solitário imagina que tipos de pecados pode uma menininha daquela idade ter.

Ela permanece um longo período se confessando, quando, de repente, o padre sai, suando e ofegante, em direção aos fundos da igreja.

O ateu persegue o padre com o olhar e acha estranho aquele andar rápido e confuso. Quando seus olhos retornam, ele percebe que a menininha o fita insistentemente exibindo um malicioso sorriso, agora é ele que começa a suar frio. Devagar ela afasta suas pernas e deixa o estranho contemplá-la.

O ateu levanta-se bruscamente e quase num pulo alcança o confessionário. No cerrar da porta os bafos quentes, o suor, mãos, seios, bocas, vulva se mesclam no breu do estreito confessionário. Em desproporção segue o prazer ao gemido limitado à respirações ofegantes.

Ela sai primeiro, saltitante e gargalhando como entrou. Ele permanece jogado, está extasiado, não sabe o nome dela nem ela o dele e tem certeza que nunca mais a encontrará. Levanta-se calmamente e segue em direção à porta percebendo que agora já sabe o tipo de pecado que uma menina daquelas pode ter para contar.

Com um sorriso à estampar-lhe a face, não se segura e confessa em voz alta.

-É... Talvez deus exista!

02 outubro, 2006

1 ano

Há um ano atrás estava chegando em Belo Horizonte pra ficar. Era um dia chuvoso e triste, que nem hoje. Estava muito apreensivo, não fazia a mínima idéia do que me esperava e do que esperavam de mim. Abandonei pessoas que perdi e pessoas que ainda me esperam. Antigamente era fácil tomar essa atitude, desse vez foi muito foda. Cheguei em uma pensão triste, pequena e suja. Um banheiro comunitário atuchado de moscas e de paredes descascando. Hoje estou em um apartamento bacana, o melhor que morei até hoje (apesar de que isso não quer dizer grande coisa) e pensando em comprar um muquifo mínimo no centro.

Gosto muito daqui, mas todos os dias eu me pergunto se valeu a pena.

Tenho que acreditar que sim. O que eu perdi eu perderia de qualquer jeito, quem eu realmente tenho não me abandonará pela distância.

E aqui estou e, provavelmente, permanecerei. Pelo menos até me encher o saco novamente e começar tudo de novo em outro lugar perdido pelo mundo. Fugir vicía.

29 setembro, 2006

Volume

Enfio a porra dos fones de ouvido por dentro do meu canal auricular quase até chegarem dentro do meu cérebro.
Pouco.
Aumento o volume no iconezinho no canto inferior direito da minha tela até o fim.
É muito pouco.
Abro a configuração de som do windows e coloco todos os botóes no talo.
Que merda, ainda é muito pouco.
Queria esse adagio em um volume que estuprasse minha alma. Queria um volume tão alto que eu não pudesse ouvir meus pensamentos. Puta merda, não aguento mais ouvir meus pensamentos.

26 setembro, 2006

Capitalismo Selvagem


Eu nunca ataquei o capitalismo, aliás sempre achei os anticapitalistas de uma ingenuidade irritante. Atacar é fácil, quero ver quem encontra uma solução melhor. São um bando de desocupados que tremem de medo pela própria incompetência em conseguir sucesso. Como não conseguem conquistar, atacam.
Sempre trabalhei em bolsa de valores e me dou muito bem com isso. Falam que tenho um certo "feeling" para entender o mercado. Eu percebo o que todos querem consumir, o que estão ávidos em comprar. Então invisto o dinheiro e me dou bem. Fiquei rico dessa forma, entupi o cú de grana. Grana que não deixo de consumir.
Até que eu te encontrei, puta maldita. Eu consumo e gosto que consumam. Mas você...
Realmente seu consumismo me incomoda, principalmente quando o que é consumido sou eu.

17 setembro, 2006

No fundo seguro de uma caixa escura, enterro tuas fotos.


Aline estava sentada no chão de seu apartamento. Sentia um desconforto estranho enquanto guardava as fotos. Nunca tinha tido o costume de bater fotos, e as poucas que tinha deixava protegidas e escondidas no fundo de escuras caixas. Nunca as espalhava pela casa, nunca sentiu necessidade de viver do passado, que é o que as fotos representavam para ela.

Mas há um tempo atrás algo aconteceu, ela mudou. Apareceu uma pessoa cuja presença queria constante. Nesse tempo sentiu vontade de fazer uma espécie de altar, queria se sentir acompanhada mesmo quando estava só. Pendurou fotos pela casa inteira, queria cada pedaço daquela vivência registrada, inundando aquele pedaço que sempre fora só seu.


Infelizmente a atitude não foi recíproca. Para o outro a presença não se fez tão constante e, pouco a pouco, se esqueceu de Aline.

Agora enquanto guarda as fotos sente uma dorzinha incômoda no peito. Olha demoradamente cada foto em uma despedida solene, tenta separar os sentimentos que as acompanham. Percebe que, conforme as deposita no fundo da caixa, vai voltando a antiga vida. Não gosta disso mas não tem opção.


Então Aline olha para as paredes nuas e percebe que nunca mais pendurará fotos nelas.

11 setembro, 2006

Desgraça pouca é bobagem



Minha geladeira pifa quando, finalmente, cheia. Estragou a maioria do que tinha dentro, mas tudo bem sou um otimista. Logo depois, a mulher que ia ser minha esposa, envelhecer comigo, assume que está perdidamente apaixonada por outra pessoa. Sem problemas, eu sou brasileiro e não desisto nunca. Então meu filho me telefona, finalmente algo de bom, penso. Ele me pede um presente de R$ 500 de aniversário. Então resolvo deixar pra consertar a placa da moto no mes que vem, já que tenho presentes, geladeira, faxina, passagens, contas e mais uma porrada de coisas pra pagar com o que sobrou do meu dinheiro.

Depois de tanta desgraça para um fim de semana tão curto, achei que hoje seria melhor. Afinal, segunda feira, inicio de nova semana, começando tudo de novo.
De manhã, vindo cedo pro trabalho, me param em uma blitz e apreendem minha moto.

É a vida, é bonita e é bonita. no gogó...


Música: Meu refrigerador não funciona (mutantes)

08 setembro, 2006

alfabetização solidária

Nada contra a idéia, apesar de que não entendo a existência de um governo que não serve pra nada. Tipo, nós abdicamos da nossa liberdade, seguindo leis impostas para que tenhamos um "ente" que nos providencie educação, segurança e saúde. É uma troca, pagamos caro com impostos e liberdade para que tomem conta de certos aspectos da vivência em sociedade que são difíceis de trabalhar, tentamos nos livrar da responsabilidade abrindo mão da liberdade. Mas pagamos um serviço que não nos supre, que não funciona. Perdemos a liberdade e pagamos os impostos mas a responsabilidade continua sendo nossa. Somos responsáveis pela educação, temos que ser solidários, somos responsáveis pela violência quando compramos drogas (a culpa não é da ilegalidade instituida pelo governo, é do cidadão), somos culpados por todas mazelas sociais que atingem as minorias (assunto que ainda quero escrever sobre). Você pagaria por um encanador que não conserta o vazamento? E que, além de tudo, coloca a culpa do vazamento em você e te manda consertar?

Bom, mas o que eu queria falar não é nada disso, como eu disse, sou completamente a favor do voluntariado, acho que somos todos responsáveis pelas merdas todas, apenas não precisamos de governo já que fazemos o serviço dele. Quero falar a respeito de uma propaganda infeliz. Propaganda que ja tinha sido veiculada e saiu do ar por um tempo. Imaginei que tinha sido sob protestos de telespectadores indignados quando, repentinamente, ela volta a ativa. A propaganda tenta incentivar o investimento em alfabetização mostrando uma empregada doméstica que pode cozinhar melhor para sua patroa pq pode ler. É lógico que nunca nada é feito por desinteresse, nem que seja para pagar um alivio de consciencia, tem que existir uma recompensa. Porém esse enfoque, pelo menos para mim (e parece que só para mim), vai completamente contra o princípio que deveria nortear esse tipo de propaganda

Enfim vai o link da propaganda para quem não sabe do que estou falando.

http://www.alfabetizacao.org.br/aapas_site/ascampanha_video.asp


Vamos todos juntos alfabetizar para que a dona Maria tenha um prato chique e bem preparado. O próximo passo serão aulas de francês.


"quando acabar o maluco sou eu"


E um blues de sugestão para sobremesa: Worried life blues

05 setembro, 2006

Conto de Morena Noite

Texto antigo.



É sexta-feira e os lobos uivam nesta noite, clamando pelas possibilidades não tentadas.
A pálida lua faz-se alta, ensandecendo mentes solitárias e inspirando pensamentos inimagináveis na rotina do dia.
Está na hora! Inicia-se a frenética busca da recompensa esperada de emoções devidas pelos dias de labuta.
Absorto em vagos pensamentos, aqui me encontro, novamente protegido pela anonimidade que somente as trevas nos concedem. Imerso neste mundo que já me é familiar rumo instintivamente ao meu destino.

No carro, cujo rádio faz-se ausente, meus lábios cantarolam inconscientes, embalados pelo metódico pulsar da noite Campo Grandense. O azedo cheiro de vinho recentemente derramado sobre o estofado esvai-se. Luzes cortam a espessa atmosfera plúmbea da garoa formando riscos luminosos que sangram momentaneamente a pele da negra noite. O resto de mim cala-se. Cala-se cerimoniosamente em respeito às inúmeras portas já ultrapassadas e às que ainda encontram-se cerradas à espera de sussurros que as libertem de seus pesados ferrolhos.

Quais possibilidades surgirão e quais se extinguirão? Que odores, sons, gestos, gostos ou texturas testarão os sentidos de seu inconseqüente narrador?

O amarelo piscar do marcador do tanque de combustível insiste em lembrar-me do iminente fim de mês e, conseqüentemente, da minha lastimável situação financeira.
Dou meu último trago no cigarro enquanto estaciono em frente à porta semi-iluminada. Desprovido da vermelha reluzente armadura de metal aspiro o inebriante, suave e conhecido odor exalado pelos serenos ocupantes da calçada em frente ao estabelecimento no momento em que seduzem suas fêmeas Marias.

Não me protejo da chuva, não é necessário. Pelo contrário, o gelado afagar de seu pranto escorrendo pela pele deixa-me extremamente relaxado.
Nenhuma placa a identificar o lugar. É assim que deve ser...
Subo a íngreme escada que dá acesso ao interior do recinto. Ao meio vê-se a mesinha marrom já surrada pelo tempo usada como caixa para o pagamento das entradas. Soltas, duas moedas rolam tilintando e correm fugazmente sumindo, em seguida, dentro da gaveta. O anfitrião estuda uma grave, porêm inofensiva feição e permite minha entrada.

- Hoje, no cardápio, digeriremos blues. Informa-me.

Sei! Penso comigo. Por isso, apesar de ter que madrugar para trampar, aqui me encontro.
Mas, doce ilusão, não me convenço, sei que é outro o meu motivo e continuo seguindo os estreitos degraus onde lê-se avisos sobre os perigos da escada aos embriagados transeuntes.

A visão que se tem em seguida aproxima-se de um sonho. Visões distorcidas pela fumaça dos cigarros onde feixes de tênue luz insistem em violentar a fugaz neblina. Suaves e adocicados perfumes femininos misturados ao acre odor do tabaco compoem o aroma que conta com uma trilha sonora mesclada de distorcidos instrumentos musicais, gargalhadas, o trânsito logo ao lado, agudas colisões de bolas de bilhar e espasmos vocais dos mais variados timbres, tudo misturado em uma imaginária competição de superação em altura, só controlada e parcialmente amenizada com a entrada da melancólica voz do vocalista da banda composta por habilidosos bêbados.

Cheguei em casa!

Aproximo-me do balcão reconhecendo, ao longo do torto percurso, amigos e um antigo rosto cuja contígua história retêm chagas ainda não cicatrizadas.

- Uma cerveja! Peço ao meu prestativo rival, tentando assim, consolar-me da decepção. Ela não está!

Munido de um cigarro em uma mão e uma garrafa na outra me dirijo a um escuro canto do bar. Sento-me em uma fria cadeira de metal já que o único banco de balcão existente encontra-se ocupado. Sorvo grandes goles direto do gargalo, assim me sou mais fiel.
Encontro-me finalizando agora mais um fino dragão e percebo que a deusa por mim buscada no fundo do recipiente de vidro âmbar já me embala. Enquanto isso o vocalista entoa seus lamuriosos versos que contam a história de alguém que festeja sua solidão.

Do meu canto aprecio as pessoas nas suas discretas tentativas de auto-afirmação enquanto tento me concentrar nas minhas próprias.
Mulheres já tombadas em meu leito desviam os olhares assustadas esperando não serem reconhecidas, e não desrespeitarem assim os seus atuais proprietários. É impressionante como esse tipo de atitude, apesar de ser de uma enorme trivialidade, ainda me espanta.

- Mais uma! Ao eficiente rival de novo me dirijo. Ele sacode a cabeça alinhando os atributos que os levaram a adquirir seu pseudônimo e me atende.

Num instante, faz-se silêncio. Percebo uma crescente tensão no ar. Algo acontecerá. Acordes reverbam Suspicious Mind. Presságio? O ar pesado se dilui e começo a vislumbrar sua forma. Inicialmente apenas a silhueta, cercada por entes que disputam sua atenção. Então a imagem fica nítida e me deleito com a visão de um sorriso, que, se pudesse ser definido, situá-lo-ia na fronteira entre o sacana e o ingênuo. Afasto-me, retendo-me na minha insignificância entrincheirada em meu orgulho. Ao longe, contento-me ao exercício de platônicamente admirar minha musa. Ainda não...

Segura em seu pedestal de mistério e inacessibilidade dança sorrindo por trás do balcão, sua indiferença provoca-me ainda mais.
Desvio o olhar para o show, indagando se minha presença por ela é notada. Meu ligeiro rival não pára, porém não se ausenta por muito tempo.
Viro-me novamente e, imaginem caros amigos, encontra-se ela ao meu lado. Sorrindo enrubescido teço imbecis comentários a respeito da música que toca ao fundo. Encantado, contemplo o brilho do seu rosto e o suave e hipnótico arfar de seus fartos seios ao comentar sobre minha, já constante, visita (bom sinal! Não passei despercebido).

Discutimos amenidades, tento impressioná-la contando bravos feitos como se fosse uma animal expondo suas qualidades para convencer a parceira a escolhê-lo, porém, não posso fazer-me óbvio, meu atento rival encontra-se à espreita. Inseguro finjo indiferença, mas o diálogo é interrompido... sutilmente meu sagaz rival fez-se presente.

Afasto-me calmamente em direção à saída com um sorriso que insiste em estampar-me a face.
Palavras invadem minha mente em tão grande quantidade que me atormentam, queria eu ter competência para, em lógico sentido, poder ordená-las.

Agora parto à minha humilde e solitária moradia atropelando esporádicos reflexos.
Talvez ela nem tenha percebido, mas enquanto se enlaça em meu afortunado rival, um pedaço do seu pensamento já me pertence, e basta para que, em propícias ocasiões, continue a ser cultivado.

Sedução, meus caros amigos, é um doce vício do qual ninguém quer se curar.

E o fim desta história? Indagam-me os curiosos leitores cuja honra foi-me dada por terem conseguido até aqui chegar. - Também anseio por sabê-lo - Respondo-lhes. Infelizmente, tal desfecho não me foi revelado, pois nas entranhas do destino encontra-se ainda trancafiado, esperando, talvez, a próxima noite de Sexta para acontecer. Quem sabe?


Apenas sutil
Mais noites virão
Não foi por agora,
Mas outras serão




Morre a noite,
A garoa acaba...
Os sons já são outros,
Retorno para casa.




Dormem lobos, acordam ovelhas.

30 agosto, 2006

Eremita


Da vida estranha que tinha, só a certeza da solidão lhe restara. Sempre que estava acompanhada lhe vinha o irresistível instinto de estar só. assim ficava, assim era melhor.

Tudo era muito complicado, ela percebia que era covardia, mas não aguentava lutar mais. Quando zombavam da existência de eremitas naquelas cercanias, não compartilhava do absurdo que invadia seus amigos. Percebia a mesma lógica, sentia que era feita da mesma substância. Uma espécie de suicídio sereno.

Afinal não entendia pq continuava naquela luta ferrenha que travava com quem não conhecia. Cansou de esperar, cansou de acordar, cansou de olhar no relógio, cansou de ter que ficar a parte melhor da vida, os dias mais ensolarados, presa em um escritório cujo trabalho não via significado. Alias não via significado em nenhum trabalho, a não ser o que gerasse um produto que diretamente necessitava.
Era culpa dela não perceber o valor que todos viam? Na verdade ela imaginava que todos percebiam o mesmo que ela, só que entendiam alguma coisa a mais. Algo que ela, em seu maior esforço, não conseguia compreender. Não adiantava, estava a vida inteira procurando essa visão redentora que todos, menos ela, possuíam.

Cansou.

A última vez que foi vista estava enfeitando um sonho de um moço bonito e confuso. Perdeu-se nos confins de uma serra de ferro. Uma serra que atrapalhava as bússolas e assustava os turistas. Lá se concentrou em enfeitar a própria vida e gritou a plenos pulmões:

- Que se foda o resto.

Foi o último palavrão, aliás as últimas palavras, que proferiu. Hoje anda sobre as brumas que se esparramam pelas montanhas nas primeiras horas do alvorecer.



"And I got troubles oh, but not today
Cause they gonna wash away
This old heart gonna take them away"
tesão:
http://www.youtube.com/watch?v=uu7BasZwjDw

28 agosto, 2006

Não consegui voar


"Maria acordou suando, o sol já estava alto e o edredon era pesado demais. Merecia um banho demorado depois de uma noite tão difícil. O chuveiro queimou de novo.
- Zé vai me matar.
Mas não importa mais, foi seu último banho naquele chuveiro que não agüentava muito tempo ligado.
Ela acorda seu amigo com um beijo. Ele teve a pior noite da sua vida e Maria se sente impotente em não conseguir tirar sua dor. Mas ao menos estava ali, como ele pediu.
(...) Ontem...

- Que diabo é essa coisa de ver o outro sofrer e sentir também a dor?
Maria não aprende. Sempre altruísta, sem perder essa mania. Como se tivesse esse controle. Talvez tenha prazer nisso, mas não tem ainda essa noção. Sofre de verdade.

- Ora, isso não é altruísmo, é burrice!
- ...
- Sei o que está sentindo, Zé.
- Você não tem como saber, nunca passou por isso. Vê se já teve esse problema de alguém não te querer? Todo mundo te quer.
- ...
- Tô afim de sacanear todo mundo.
- Não é justo. Pouca gente merece.
- Todo mundo merece. A vaca é uma filha da puta, eu sou filho da puta, você também é filha da puta.
- Tenho uma solução. Vamos pular da janela?
- Acho uma boa idéia. Vamos tentar cair em cima de algum carro lá embaixo para sacanearmos mais alguém? Não tem problema, o dono do carro também é um filho da puta.

Um breve silêncio. Não havia mais as velhas músicas ao fundo. Todas elas o remetiam a dolorosas lembranças que não mereciam ser lembradas. Mas outros sons tomaram conta da noite quente, seca e sem lua: sirenes, gritos, choros...

Olhando pela janela:
- Será que a gente voa, Maria?
- Daqui a pouco vou conseguir voar. É só fechar meus olhos.
- Não dormindo, sua doida. E se, em vez de cair, voássemos de verdade?

Foi tudo que ela conseguia se lembrar.
(...)
-Bom dia ma petite!
- Zé, essa noite não consegui voar. Mas eu vi que você conseguiu. Vi você voando bem alto. Você sorriu, um sorriso tão lindo que me fez sorrir também. Disse que sua dor havia passado e estava feliz."


pour petite



"...Eu só voltei pra te contar
Viajei...Fui pra Serra do Luar
Eu mergulhei...Ah!!! Eu quis voar
Agora eu sei, vim pra terra pra ficar.

Viver é afinar o instrumento
De dentro pra fora
De fora pra dentro..."

11 agosto, 2006

Hoje vou te fazer chorar...


A menina mais triste do mundo estava sentada no banco que ficava bem no meio da praça vazia. Pousava sua cabeça nas mãos enquanto contemplava fixamente o chão.

No mesmo instante a mulher feia cruza a esquina e pára ante a visão da menina mais triste do mundo.

A moça feia olha a menina mais triste do mundo e sorri ironicamente. "Que falta do que fazer. Ela deveria é arrumar uma trouxa de roupa suja pra lavar."

A moça feia não tinha tempo de ser triste, se ocupava vivendo, pensava nos filhos que tinha que alimentar, sozinhos em casa.

Enquanto isso, a menina mais triste do mundo, sentada no banco velho da praça vazia, pensava ao ver a mulher feia ao longe: "Ela deve estar me julgando. Mas a culpa dela ser feia é dela, se fosse esperta não teria tido os filhos, teria estudado, arrumado um bom emprego e daí poderia ser tão triste quanto quisesse."


"Nunca pensei um dia chegar, e te ouvi dizer:
-Não é por mal, mas vou te fazer chorar. Hoje vou te fazer chorar.

Não tenho muito tempo, tenho medo de ser um só, tenho medo de ser só um alguém pra se lembrar.
-Alguém pra se lembrar.

Deixei que tudo desaparecesse e, perto do fim, não pude mais encontrar, e o amor ainda estava lá.
-A porra do amor ainda estava lá."

04 agosto, 2006

Tudo que é peito sangra

O escroto sai do puteiro batendo a porta e vestindo a camisa com raiva. Entredentes esbraveja:

- Quem essa puta pensa que é pra vir me falar de amor? É usada por homens ha tanto tempo que confunde carência com amor. Bom, talvez seja mesmo. Só sei que amor é uma merda, não vale a pena. É tão necessário quanto uma dor de dente. Quem fala o contrário é pra se iludir, pra tentar não ver o tempo que se perde com ele. É só sofrimento. Sofre-se enquanto ama porque tem medo de perder, e sofre de autopiedade e raiva depois que se toma um pé na bunda. É uma porra de um sofrimento desgraçado. Essa coisa é pra masoquistas e eu não levo jeito pra isso.

O escroto continua pisando firme. Atravessa a noite gelada vermelho de raiva. Cruza os becos molhados de sereno entre latidos dos cachorros irritados.

- Aquela vaca. Eu já disse pra ela que eu não amo nada e ninguém. Disse isso todas as noites que fui procurá-la. Aliás todos as noites desses últimos 6 anos. Gastei todo meu dinheiro com a vagabunda, até que, finalmente, desistiu de me cobrar. O saco é ter que esperar o fim do expediente, mas eu fico lá, nem que seja só para dar uma foda e dizer que eu não a amo. Daí ela chora e eu vou embora. É sempre assim. Amanhã eu volto, agora ela vai chorar até dormir. Essa piranha não sabe nada sobre o amor.

"O amor é um palito de fósforo chapinhando em um mictório de um banheiro sujo"

"Às vezes eu quero chorar
Mas o dia nasce e eu esqueço.

Meus olhos se escondem
Onde explodem paixões

E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista p'ro mar

Ou outra coisa p'rá lembrar"


30 julho, 2006

Fé cega, faca amolada...

A fé.
Expio meus pecados no sangue que meus joelhos deixam na pedra. Lhe entrego minha caridade prepotente para que me tires o peso da responsabilidade sobre meus atos e minha vida.
Lhe beijo os cravos para que me de a bênção da ignorância. Não quero saber, não quero decidir, não quero ter culpa.

E nisso me escondo. E disso me orgulho.

Amém.

22 julho, 2006

Calaboca !!!


Ainda na ridícula e cansativa fase de dor de cotovelo, ai vai mais uma música babaca:

"Um amor assim delicado

Você pega e despreza
Não devia ter despertado
Ajoelha e não reza

Dessa coisa que mete medo
Pela sua grandeza
Não sou o único culpado
Disso eu tenho a certeza

Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente que me envenenou
Senhora, e agora, me diz onde eu vou
Senhora, serpente, princesa

Um amor assim violento
Quando torna-se mágoa
É o avesso de um sentimento
Oceano sem água

Ondas, desejo de vingança
Dessa desnatureza
Bateu forte sem esperança
Contra a tua dureza

Um amor assim delicado
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria

Você pensa que eu tenho tudo
E vazio me deixa
Mas Deus não quer que eu fique mudo
E eu te grito esta queixa"

Porém espero que seja a última, não tenho muita paciência pra isso, afinal "o que me importa é não estar vencido". De qualquer forma caboclo, não se esqueça, "os ventos do norte não movem moinhos" ;-)

20 julho, 2006

Que porra

Acabaram meus textos em arquivo e minha inspiração morreu.

Isso aqui tá definhando...

Vou postar um trecho de uma música bem animada.

"...Eu hoje acordei tão só,
mais só do que eu merecia,
eu acho que será pra sempre,
mas sempre não é todo dia..."

"...eu que pensei que fazia,
daquele ventre meu cais,
só percebi meu naufrágio,
quando era tarde demais,
vi anabela partindo,
pra não voltar nunca mais..."



Ainda tenho que escrever um texto sobre a significância que todas as músicas adquirem quando se está na merda. Será que toda produção musical foi feita só pra isso? Que falta de criatividade.

30 junho, 2006

All stars no canadá

Daqui não ouço mais teus passos.
Desconheço-os agora, distantes que estão.
Os lugares que os sustentam, cujo privilégio invejo, estão diferentes. Lugares que apesar de ainda serem os mesmos, diferem por já não ecoarem os teus nos meus que, melancólicos, tentavam acompanhá-los em firmeza e beleza.

Daqui, apenas tenho a certeza que atrairás outros vários, circundantes, suplicantes, sufocantes, intromissivos, agressivos, apaixonados, delirantes, cativantes e só posso me resignar em ter a esperança de que não sejam apaixonantes.

Passos tão livres agora, tantos os teus quantos os meus, tão livres quanto sem graça. Passos que pisam em meu coração doente, que briga com minha razão sadia, que grita mas não impera, e deixa o dito coração querer amarrá-los.

Fico então sentado, tiro solenemente meus pés do chão, apuro o ouvido e choro desesperado.

Não adianta, daqui não ouço mais teus passos.

"Me esqueça sim

Pra não sofrer
Pra não chorar
Pra não sentir"

26 junho, 2006

Monólogo de dois

- Não é nada disso! É que eu voltei a ter aqueles pesadelos.Voltaram a me atormentar os meus cruéis personagens noturnos. Me torturam com suas lamúrias, com seus gestos... Cada atitude deles me leva a lembrar das minhas feridas, das malditas situações que me fogem completamente ao controle. De que adianta esse meu racional tão apurado, minhã razão fria e cética?
- ...
- Claro, mas agora eu caio desse pedestal com uma facilidade incrível. Um dos sonhos, o de ontem pra ser específico, foi inicialmente bonito. Uma jovem linda, de cabelos negros e curtos me explicava o funcionamento de sua arte. Ela possuia uma espécie de tambor gigantesco onde o som de sua voz reverberava sendo controlado por seus dedos que mudavam a tensão da pele. O som de sua voz ecoava repetidamente, aumentando gradativamente na proporção em que rebatia nas paredes, até que enchia o ambiente, se tornava gigante, lindo, penetrava completamente em minha alma. Nesse momento ele, o som, tentou expurgar algo mais que lá habitava. Tentou competir com o que não tem competição, e todos meu ser se fechou em reflexo. Minhas lembranças doentes e meus sentimentos egoístas explodiram nessa dor constante que eu carrego na alma.
-...
- Será que só eu enxergo com essa clareza? Como pode alguém ainda dar importância para o que eu digo? Eu já não me respeito mais, me conheço demais para isso.Patético! Só isso. Patético!
-...
-Nada disso, eu sou o único culpado. Quem dera conseguir aliviar esse peso imenso que carrego dividindo-o com mais alguém. Não consigo. Sou racional, eu sei que não devia sentir isso, mas sinto, e isso me mata. Isso me mostra o quão eu não sou o que gostaria. Hoje eu vejo o tanto que eu não queria ser eu. Mas já fudeu, se não consegui até hoje, jamais conseguirei. É uma sina que eu não sei se suporto.
-...
-Acho ridículo imaginar que alguém escute vozes. Não acredito nisso. Nunca conheci nenhum esquizofrênico. Eu não ouço vozes. Talvez apenas pense demais e perceba o óbvio: não adianta continuar.
-...
-Te espero lá embaixo.

E ele pula. Abre um sorriso e os braços. O difícil é só o impulso inicial que, pra ele, foi moleza. A inevitabilidade do resto o conforta. Pelo menos agora não está a mercê das coisas que não controla. Finalmente, agora, nesse último percurso, enquando as janelas do edifício passam loucamente, ele tem tudo planejado. Ele controla, sabe exatamente o que vai acontecer de agora até o fim de sua vida. Que acaba.

E lá, da janela do quarto vazio onde teve início a corajosa trajetória, quase se identifica a mão da razão, que seus medos e incompetências deixaram sólida a ponto de quase poder ser vista, abanando feliz.

18 junho, 2006

Ciumento, eu?


Chego tarde no bar, depois da meia noite. Não podia ser de outra forma, ele já está cheio e barulhento. Muita gente do lado de fora, fazendo algazarra e não tendo nenhum motivo para estar ali, um monte de figurantes desnecessários e desinteressantes.

Passo direto por eles e entro no bar, la dentro está pior ainda, todo o salão lotado de macacos barulhentos tentando chamar atenção, um gritando mais do que o outro.

Meu, que merda que to fazendo aqui? Este não meu tipo de ambiente. Meus olhos vagueiam pelo salão. Neste momento meu olhar trava no palco, e imediatamente me lembro do porquê.

- Débora!

Os olhares sequiosos todos voltados para ela, a garota que, habilmente, dedilha um violão no palco. Os homens do lugar a observavam com um tesão incontido, sorvendo seus copos de cerveja sem desviar o olhar, e as mulheres com a costumeira inveja. Elas tentam superar o som falando cada vez mais alto para chamar a atenção. Coitadas, não tem a mínima chance. Débora, com seu jeito de garota altiva e a forma peculiar de se vestir jamais passariam despercebidos nesse lugar de idéias tão comuns e estereotipadas. Seus dedos percorrem o braço do violão enquanto franze o cenho, característica que já havia percebido desde a primeira vez que a ouvi cantar e lhe dá um aspecto de criança emburrada que é extremamente sedutor.

Percebo os murmúrios elogiosos que emanam dos ouvintes, alguns cogitam a possibilidade de comê-la.

- Idiotas!

Apesar dela não ter fidelidade como uma de suas qualidades (pra falar a verdade, ambos somos promíscuos incorrigíveis), sou eu quem vai levá-la pra cama hoje. Esse pensamento me tranqüiliza momentaneamente e deixo escapar um meio sorriso. Peço mais uma cerveja no momento em que Adão chega e me cumprimenta com gestos forçados e largos, como se eu fosse um grande amigo.

Só conversamos uma vez, quando comprei uma bucha de pó, imaginei que ele nem tinha notado a minha cara na hora, de tão paranóico que ele estava, não entendo aquela intimidade e retribuo desconfiado.

- E ai Adão?
- Fala meu rei. Há quanto tempo? Que foi que parou de me procurar?
- Dei um tempo nessa merda, quase me fudi com ela.
- Num brinca meu rei, o que aconteceu?
- Eu e a Débora estávamos numa festa e tínhamos cheirado umas carreiras no banheiro. A Débora ficou só no whisky e eu misturando tudo que me aparecia, como sempre. Um infeliz safado dum playboy babaca chegou junto da Débora segurando na cintura. Já olhei meio desconfiado pro folgado, e o cara me ignorando. Porra meu, você sabe que eu não sou ciumento, mas o cara ficava falando na orelha dela, bem pertinho e soltando umas gargalhadas idiotas. O sangue me subiu quando a mão dele começou a descer. O filho da puta já tava com a mão quase na bunda dela quando eu tirei a arma da cintura e meti na cara do palhaço. Quase descarreguei o berro na cara do sujeito. Tinha que ver, o cara se mijou todo, tava com o cú na mão. Na mesma hora ela me tirou de lá. Brigamos um pouco e ela me fez prometer que pararíamos de cheirar e eu de andar com revólver. Então parei de te procurar.

Adão me convida para jogar uma partida de sinuca. Desconfio da sua cordialidade e recuso o convite falando que sou uma merda nesse tipo de jogo. Sua insistência e a sensação desagradável de estar sozinho naquele boteco onde todos andam em bando me faz aceitar a proposta.

Não menti pro Adão, não jogo lhufas desse negócio. Mas estou com sorte, sempre gosto de dizer que deve ter um santo que acompanha os ébrios, pelo menos à mim. Mato diversas bolas com uma sorte incrível que me faz passar por mentiroso. Aproveito-me da situação e faço cara de desdém quando acerto alguma bola difícil, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Débora arrasa quando começa a cantar umas músicas internacionais que mostram mais a potência e beleza de sua voz. Ela já me disse que não se sente mais a vontade para cantar aquelas músicas, já que pertencem a um passado distante que já não faz mais parte da sua realidade, mesmo assim ela atende aos sôfregos pedidos dos ouvintes. Não canso de ouvi-la e de olhá-la, ela é linda.

Largo o Adão na primeira oportunidade. Porra, na certa ele me viu chegando com Débora e quis marcar algum tipo de presença, ninguém aborda ninguém desinteressadamente. Pego a fila do banheiro e tento ficar quieto. Até na fila do banheiro tem algazarra, não sei o que tanto esse pessoal conversa, são um bando de imbecis com idéias prontas. Amenidades que não valem nem o esforço do movimento do maxilar. Bando de punheteiros, todos interessados em Débora, ainda bem que eu não sou ciumento.

- Cara, essa mulher canta pra caralho, hein? Me fala o cidadão que está logo à minha frente na fila.
- É. Respondo indiferente, sem sequer virar o rosto. Porque todo bêbado acha que é teu amigo?
- Além de tudo é gostosa pra caralho. Como não dei atenção ele agora se dirige ao cara que está antes dele na fila.

-EU NÃO SOU CIUMENTO PORRA!!!
Não sou ciumento,
Não sou ciumento,
Não sou ciumento...

Quando chega a vez do bêbado entrar no banheiro, eu vou junto sem dar tempo dele perceber.

...

Estou no banheiro quando percebo que Débora terminou o show e me divirto ouvindo os protestos. Tenho que ser rápido senão ela desconfia.

As batidas na porta estão cada vez mais intensas, perderam a paciência, estou a muito tempo aqui. Olho pro espelho e encaro um monte de rostos meus refletidos:

-Um puto fragmentado, é isso que você é. Bom, agora tenho que sair, pegar a Débora e dar o fora antes que alguém veja essa sujeira e comece o tumulto.

Estico uma última e gorda carreira na tampa da privada e aspiro tudo de uma vez, então olho de soslaio o corpo no chão do banheiro. Babaca. Estourei a cara do infeliz no espelho e contemplo a faca fincada entre as costelas. Bom, pelo menos mantive parte da minha promessa, não ando mais com o revólver.

01 junho, 2006

Meu infinito reino limitado

Aqui me reino, no pequeno espaço que sobrou entre meu orgulho e o que de ti recebo,
Aqui me tenho e me guardo,
enquanto no tolo compasso de tuas paixões,
singes tua disciplina sobre esse meu pequeno universo.

Assombras-me em sonhos com teus inúmeros comparsas
enquanto me protejo em minhas mínimas pretensões
que apenas conseguem roçar as realidades que almejas.

Não entendo tua pressa nessa rua que te leva,
no instante em que quase chegas,
sempre longe do que queres.

Talvez porque eu não possa enxergar (nem atravessar)
até a outra margem da fronteira em que te encontras,
e perceber que o que queres
é apenas querer.

E eu? Ah!
Eu tu já tens.

Sozinho de noite.
Minha boca seca de saudade da sua.
Minha boca se cala, maldade sua.

29 maio, 2006

A escadaria

Descansado e de pensamentos virgens, não olha os degraus futuros, se concentra apenas no iminente. Aqui, no eterno presente, começa sua jornada pela escadaria tortuosa e de comprimento indefinido. Não é difícil, cada movimento é novo, distinto. Cada passo único em sua pobre percepção inexperiente. Começa a construir sua realidade dispersa e distante. Ele basta a si mesmo, se completa. Todo auxílio externo necessário à sua sobrevivência é doloroso. A comunicação com os outros sempre é difícil. A engrenagem que acolhe a todos o deixa órfão. Aqui se assusta com facilidade. Tenta passar despercebido pela vida, tem medo da reação das pessoas e procura não perturbá-las.

Sobe. Não é só mais o mero obstáculo presente que a escada representa. Cada degrau acrescenta um peso dos outros decorrente. O que é agora galgado, não pode mais se resumir a si só, a força consumida para até ali chegar o torna extensão direta de um movimento quase único de todos anteriores a ele. Seu tamanho e distância o mostra como seguro e decidido, percebe que não precisa de coragem para intimidar e se protege em sua covardia inerente.

Chega agora então ao fim. O esforço fica insuportável. O peso de sua vivência o flagela. Seus pecados e vitórias são demasiados para aquela consciência de ossos fracos. Não cede ao cansaço até o último segundo, apoiado por uma força consequente do orgulho imponente que faz questão de ostentar. Não resiste. Tal qual o enigma da esfinge estica sua terceira perna ao agarrar o polido corrimão de cobre. Não se mantém sozinho. A ajuda sempre escorraçada agora é necessária. O apoio de tudo que construiu e afetou agora será cobrado. A dúvida o assola e arranca uma lágrima que ondula por suas numerosas rugas. O fim da escada chegará, o que o preocupa é se subirá o que resta de forma digna.

26 maio, 2006

Crash

Não sou de escrever sobre filmes ou músicas, não sei muito o porque. Talvez por ter me tornado ranzinza antes do tempo e não gostar de nada. Só sei que meu gosto não serve de referência, é algo de ácido e bizarro. Talvez seja também por que eu não sei o porque eu gosto ou não de algo, simplesmente gosto e pronto. Não tenho a arte da Clara que tem uma postura definida com relação a tudo, mudo muito meus gostos em pouco tempo. De qualquer forma me predispus a comentar um filme que eu gostei.

Assisti o filme cheio de preconceitos. A prepotência de ser homônimo a um filme antigo que gosto muito me irritou. Mas o filme justamente trata disso, de preconceitos.
O que me impressionou foi a falta de maniqueísmo do filme, algo que não me lembro de ter visto antes, postura esta, que o começo do filme disfarça. Já esperava assistir um filme cheio de rotulações e dramático sobre os coitadinhos do bem e os bandidos malvados, mas me surpreendi. Ele mostra, de uma bela e intensa maneira, como todos somos preconceituosos e assumimos posturas bem diferentes de acordo com a situação. Nenhum dos personagens é óbvio, cada um mostra ser capaz de ser odioso ou maravilhoso igualmente ao outro a que odeia, e isso é de uma honestidade inesperada vindo de algo fora dos livros. Esse lado obscuro existente em todo ser humano, tão bem retratado por Dostoievski (e por isso que eu o adoro) é que faz esse filme tão interessante.

25 maio, 2006

Comendo o passado nas linhas que deixaste de rastro

Como se já não bastasse pensar em ti o dia todo, eu te vejo. Teus retratos não se resignam em ficar espalhados pela casa e na tela do computador, me acompanham pela rua, pelo trabalho, violentando minha pobre retina que já está cansada de tentar te ver em outras putas.
Como se já não bastasse te ver o dia todo, eu te leio. Me pego remexendo bites antigos dessa história. Meus dedos olhos e alma imerso nestas emoções que me fodem.
Revejo palavras que alfinetam e frases que acariciam. Visito alguns coadjuvantes valentes e os muitos rivais, muito mais numerosos e belicosos. Ah, quantos rivais.
Feliz me vejo dentro dessa história que fere. Fere pela intensidade, fere pela beleza, fere pelas interrupções, pelas intromissões, pelos não convidados, pelas traições.
Me perco nas linhas que se alteram conforme nossa vida se desenrolava. Ódio e amor tão entrelaçados. Ciúme e confiança numa dança de seduções e aprendizado.

Eras tão deprimida, criança. Eu era tão confiante, babaca.

Nós mudamos.

Nunca estiveste tão longe do suicídio, já eu nunca tão perto.

"Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu"

22 maio, 2006

Sangrado Coração


Notou imediatamente a fraqueza do orgão em sua presença. Nesta atípica situação tateou o dito cujo com sua mãos finas. Moldava-o ao seu bel prazer. Futucou, futucou até que o músculo, numa desistência voluntária, cedeu vazando. Qual represa segurando a pressão de um imenso rio que ao menor furo impele suas águas à passar toda ao mesmo tempo pelo mínimo orifício conduzindo-a a almejada liberdade, jorrou o sangue com a força de sentimentos represados e inpensados.

Mas ela não era má, riu do inesperado da situação como uma de suas artes que era acostumada na infância, suavemente acariciou o órgão procurando a ferida e com o seu dedo preencheu o furo mortal lá permanecendo. Desse dia em diante qualquer ausência, pelo mínimo de tempo, deixa o vão aberto e entrega o pobre coração à morte exangue.

"I want to be a good woman
And I want, for you to be a good man.
This is why I will be leaving
And this is why, I can’t see you no more.
I will miss your heart so tender
And I will love
This love forever
"

(Cat power)

15 maio, 2006

Como se fuma uma dor


Da ponta do charuto ainda sai um resto de fumaça dançando pelo ar. Esvaece. Baila.
Ela me disse que charuto não se apaga, não se espreme e sufoca a brasa, deixa queimar sozinho no cinzeiro que ele, sem o impulso combustível do tragador, irá inevitavelmente apagar.

A agonia que a irresistível assimilação que essa cena traz de minha vida espreme minha cabeça como um invisível torniquete que, a cada segundo dá mais uma volta, aumentando a pressão dele decorrente.
A falta de impulso e estímulo apaga o que ainda me resta de ânimo. Observo o charuto parado no cinzeiro e me comovo. “Nunca sinta pena de si”, pensava.

Não, não é pena, é ódio. Que situação aquela. Que culpa infeliz a de não conseguir perceber nada em torno que valesse a pena, nada que aqueles estúpidos e felizes coadjuvantes extraem da ignorância.

Não há possibilidade de alguém racional perceber alguma coisa de interessante numa vivência vazia, que as pessoas tentam sofregamente preencher com ilusões teológicas tentando achar uma desculpa para o seu próximo respirar.

Gangrenado de tédio, meu ânimo até disso se esquece. Estou a quanto tempo sem respirar? Um segundo? Minuto talvez? horas? Desde o “nunca mais” seguido por um ríspido bater de porta? Talvez desde sempre.

Inevitavelmente a lembrança me fez puxar uma nova leva de ar que me deu mais eternos minutos para pensar. Afundado na poltrona observo a fumaça sair pela janela. Está se apagando.
Numa ironia maldosa pego o toco esfumaçante e coloco na boca. Sorrio porque sei que não vou contribuir com o oxigênio necessário para interromper aquela decadência. Apenas ameaço, finjo que vou tragar e desisto. Sei que tenho o poder, mas não a vontade.

Uma lágrima nasce do olho irritado e morre no irônico sorriso de minha boca. De repente a porta se abre.

É Ela. Ela voltou.

Toda merda que eu pensava antes some junto com o final da bituca do charuto que, instintivamente, absorvo numa única tragada. Meu peito arde. Pela fumaça? Por causa da volta dela? Não sei distinguir as duas dores. Antes que ela esvaeça como a fumaça eu a aspiro inteira com minha boca e sinto todas as palavras do mundo inflando meus pulmões com o que preciso para o resto da vida.

Vícios, e quem vive sem eles?

08 maio, 2006

Apetitosos olhos verdes


A tormenta pegou de surpresa aquela pacata vila onde a distância impedia até a chegada do vento. O vilarejo vivia calmo como se o ar tivesse a espessura de melado. Esta situação, provocada pela densa atmosfera, era consequência direta do exaustivo calor que lá habitava, já que o vento, senhor imperioso de outras bandas, era vencido pelo cansaço que o consumia devido a distância que separa o povoado de qualquer outro local habitado. Algumas vezes uma pequena brisa se limitava a chegar na fronteira e, por lá mesmo, fazer pequenas piruetas como que tentando ganhar novo ânimo, mas logo morrer.

Seus habitantes se acostumaram a conversar com calma já que a fala de um, quando separada por certa distância, demorava a chegar aos ouvidos do outro. A voz percorria devagar o espaço, rolava preguiçosa, chegava rouca e sonolenta ao ouvido de destino. Por isso não era possí­vel uma conversa afoita naquelas cercanias e raras eram as discussões acaloradas.

Tão impressionante como a velocidade que se formou, foi a violência com que a tempestade chegou. O dia escureceu tão rapidamente que os habitantes se apavoraram imaginando estarem sendo assolados por uma cegueira coletiva. O ar se dissipou golpeado pelos gelados pingos que violentamente se chocavam contra os desavisados transeuntes. A correria foi geral. Na procura de um abrigo crianças choraram, velhos tombaram e senhoras brigaram. Muitos procuraram o bar do Tomás, o único boteco ali existente, já que as árvores não demonstraram ser uma proteção eficiente. Tomás não teve outro jeito senão acolher a multidão espavorida. Lá os moradores especularam sobre o caráter místico da tormenta.

Trovejava forte, cada estampido reforçava o choro apavorado das crianças. Um trovão se destacou dos demais pela sua permanência. Começou suave, distante, e foi aumentando devagar. Só quando dois feixes de luz transpassaram a cortina de grossa chuva é que os habitantes perceberam que se tratava de um carro que se aproximava. Automóveis por ali eram raros, na verdade só havia o da polícia que, por falta de gasolina e serviço, estava encostado há dois anos no fundo da delegacia.

- Nada de bom pode sair dessa chuva do demônio - sussurrou Tomás enquanto passava o surrado pano no balcão.

O carro rodeou a praça e estacionou em frente ao casarão das rosas, uma mansão tão antiga quanto o próprio vilarejo, somente lendas restaram do local que, apesar de vazio, era protegido por um enorme portão de ferro trancado por um cadeado. O local era menos frequentado do que o cemitério pois corriam histórias de que era mais assombrado que ele. Era todo construído de pedra e a vegetação o escondia quase que inteiramente, subia pelas paredes e serpenteava pelas grades do portão. O carro distava além do que os olhos poderiam distinguir naquela estranha tarde e só contemplou a multidão curiosa com um vulto esguio que saltou, brigou alguns segundos com o enferrujado cadeado do portão e sumiu porta adentro.

Nas mentes quietas e acostumadas com a ausência de acontecimentos aquilo, juntamente com a estranha tempestade, acionou pensamentos adormecidos pela falta de uso. Nada acontecia naquelas paragens, fora os naturais nascimentos, mortes e casamentos. A tempestade caiu durante toda a noite, obrigando os refugiados a se ajeitarem na melhor posição possível e dormir ali mesmo no bar.

O dia seguinte amanheceu limpo, de uma claridade notável. Tomás abriu as pesadas portas do estabelecimento e acordou a todos com a bela noticia. Ainda sonolentos os moradores se prostraram em frente ao bar contemplando o céu claro como se tivessem temido nunca mais vê-lo. Apenas uma teimosa e pequena nuvem negra permanecia insistente no horizonte como uma lúgubre assinatura.

As rotas mentes, limpas pelo clarão do sol nascente se lembraram do estranho que lá chegara. Foram todos, curiosos, examinar aquela mansão há muito abandonada.

Olharam o Jipe que regurgitara o visitante com desconfiança, placa de São Paulo, montes de livros escritos em língua estrangeira sobre o banco e muitas malas no bagageiro. Não se lembram de nenhum forasteiro por aquelas bandas, a estrada era caminho único só de ida. Corajosos adolescentes por ela se aventuravam em busca das promessas da civilização. Só um retornou, o filho de Tomás. Construiu o estabelecimento para garantir um rendimento para o pai e voltou para a cidade onde havia progredido. Neste retorno o filho de Tomás trouxe de bagagem muitas notícias estranhas. Um mundo inimaginável foi exposto à temerosa mente supersticiosa dos habitantes. Por isso a ofegante respiração de todos não conseguia abafar as fortes batidas que emanavam de cada coração.

Mas, para descontentamento geral do povoado, nada de impressionante aconteceu, naquele dia nem nas semanas que se passaram. Ninguém viu o morador da casa sair. Ele provavelmente tinha levado provisões, mas essas iriam acabar e, inevitavelmente, teria que dar as caras no mercado.

A cidade voltava, pouco a pouco, ao seu sossego costumeiro quando aconteceu a tragédia. Tomás, como sempre, passava o pano pelo balcão quando começou a ouvir gritos distantes. Carmem corria apavorada pela rua da cidade clamando aos céus por socorro. Logo uma multidão de curiosos seguia a jovem que entrou correndo na delegacia. Carmem era uma das mais bonitas raparigas que trabalhavam na casa verde da Ramona, o prostíbulo onde os homens iam saciar sua sede de infidelidade e sossegar seus desejos de delicadeza, já que o árduo trabalho na roça tornara as mulheres tão embrutecidas quanto eles.

No meio de gestos bruscos se ouvia um ou outro palavrão na sala fechada do delegado. Carmem atropelava as palavras enquanto suava aos píncaros pelo extremo agito. O delegado a tudo ouvia atentamente com um olhar mais abasbacado que de costume, era sensível a gravidade da situação.
Carmem, seguida pelo delegado, que por sua vez era seguido pelo resto do povoado, saiu da delegacia tomando o rumo do bordel que, por coincidência, estava na mesma direção da pequena nuvem negra que restou da tempestade.

Ramona, a dona, estava deitada de costas na extensa ravina gramada dos fundos da casa que servia de quintal. Enquanto Carmem soluçava sem conseguir tirar os olhos de sobre o corpo inerte, o delegado verificava o pulso com os dedos pressionando as artérias do pescoço de Ramona.

- Ela está morta!

A sentença não foi recebida com surpresa pelos presentes, o mais grotesco da cena não deixava dúvidas do veredicto: haviam extirpado os olhos de Ramona.
O mórbido assassinato mexeu com a imaginação do povoado.

A discussão se tornou mais acalorada quando Tomás se lembrou de um caso contado por seu filho sobre estrangeiros que visitavam o interior em busca dos olhos de ví­timas indefesas para vendê-los aos cegos ricos de seu paí­s. O filho contara que existiam grandes companhias estrangeiras que visitavam pequenas cidades onde procuravam moradores sozinhos e despreocupados, imobilizavam-nos e, sem sedativos nem nada, arrancavam-lhes os dois olhos e, vez ou outra, um fígado ou coração.

- Os estrangeiros cobram fortunas por cada par de olhos - explicava Tomás para os estupefatos ouvintes.

No começo a maioria ficou quieta, após um minuto começaram os murmúrios contra a ideia estapafúrdia. Josué, o farmacêutico, dizia que achava tudo muito improvável, sua voz ganhou algumas repetições em tom bem baixo, quase inaudíveis. Um berro recoloca a posição geral dentro dos trilhos. Bastião, um padre que parecia mais velho que o vilarejo e o casarão, dizia que deve ter sido exatamente isso que aconteceu. Os infiéis estrangeiros, que tinham pacto com o diabo estão a roubar a pureza da alma dos habitantes através da extração dos olhos. Apoiados pelo tom de voz alto do ancião todos já repetiam suas palavras, o tom de sugestão foi se perdendo no retumbe ao contrário da violência das palavras que ganhava força cada vez que a sentença era repetida. Tudo se esclarecera. Não sobravam mais dúvidas e algo tinha que ser feito.

Sem ninguém tomar iniciativa rumaram para o antigo casarão. A turba parecia impelida por uma consciência própria. Chegaram no grande portão e gritaram.

A resposta foi silêncio.

Arrombaram o enferrujado portão. Logo em seguida a porta de madeira maciça também cedeu. Numa enxurrada humana percorreram todos os cômodos e encontraram o pobre forasteiro encolhido num canto do banheiro, tremendo, articulando palavras que ninguém entendia. O estrangeiro alçou vôo, braços inamistosos o levantaram com violência no ar. Apertavam-no com uma força raivosa.

Levaram-no ao descampado onde Ramona se encontrava. A nuvem solitária flutuava acima deles. O povoado demonstrou uma criatividade excepcional em inventar vários tipos de torturas que aplicavam ao viajante. Expurgaram toda culpa e ódio de suas consciências no infeliz.

Quando não sobravam mais forças para castigar o corpo despedaçado do cadáver, a turba se dissipou. Um a um foram abandonando o lugar, dando tapinhas nas costas um dos outros satisfeitos com a justiça feita. A última a sair foi Carmem.

- Assim esses estrangeiros aprendem a não achar que nós aqui do interior somos idiotas.
E cuspiu sobre o cadáver.

Ainda se via o esguio vulto de Carmem sumindo na distância quando uma sombra negra, escondida até então, tomada de coragem começa a rodear o corpo. Numa espiral descendente ele pousa suavemente sobre a pálida face do estrangeiro.

O corvo observa intrigado aqueles olhos de uma coloração diferente de todos os que já viu. Por um momento se hipnotiza com os reflexos que as duas esferas produzem. Lindos. Parecem fitá-lo, provocando-o. Em rápidos movimentos, contrariando a atmosfera que voltava a ficar espessa, o pássaro se banqueteia com aqueles dois apetitosos olhos verdes, os de Ramona não foram suficientes para o saciarem.

E o corvo foi-se embora do vilarejo. Bem devagar, pois não era necessário um bater de asas muito frenético para sustentá-lo naquele ar grosso. Sumiu no horizonte seguindo a pequena nuvem que carregava junto com ela os medos de mudanças que tanto castigara as turvas mentes do pequeno povoado.

Das minhas limitações

Meu colchão é pequeno para o que quero fazer contigo,
meu talento insignificante para te impressionar como gostaria,
minhas paredes são finas para abafar teus gritos,
meu vocabulário é limitado para descrever o prazer que me dás
e, mais que tudo, minha vida é muito curta pelo tempo que eu quero passar do teu lado.

19 abril, 2006

Natureza morta


-Jazia inerte. Balbuciava Amando.
-Jazia inerte. Repetia insistentemente. Suas frases não conseguiam permanecer em sua cabeça, seus lábios insistiam em mover-se dando vazão a algo que precisava ser expurgado.
-Jazia inerte, jazia inerte, jazia inerte...
O enfermeiro chega à sua porta. É sua vez de tomar o remédio. A pí­lula azul é parte do tratamento, faz ele ficar calado e parecer mais normal, quase aceitável para os outros. O que ninguém sabia, aliás estavam pouco se fodendo, era que os lábios paravam mas a sua cabeça continuava.
-Jazia inerte, jazia inerte, jazia inerte...
A pequena cápsula desliza facilmente com um gole de água. Uns minutinhos. Pronto. O fio de baba que escorre pelo queixo indica que já fez efeito. O enfermeiro sai mas deixa a porta aberta para socorrê-lo rapidamente caso exploda em mais um de seus surtos violentos.

O começo dos surtos é tranquilo, Amando começa fitando fixamente a alva parede da clí­nica, um lugar qualquer, escolhido aparentemente a esmo. A brancura incólume das paredes o aquieta. O acesso começa quando a parede vai se pintando de rubro. Tudo fica vermelho para seus olhos saturados de violência. Violência que começara a usar para sentir-se menos amortecido em seu entorpecimento causado pela insensibilidade. Um acordo entre ele e Maria que padecia da mesma tara.
-Jazia inerte...
Desde que tivera a triste constatação de que Maria jazia inerte, ele repetia a sentença como uma oração. Sua mente congelara no tempo. Estagnou na visão de Maria que, depois de golfar sangue aos espasmos, cessou de gemer.
Daquele dia em diante Amando foi enclausurado naquele manicômio. Sua noção de realidade esvaí­ra-se com a vida de Maria.
A passagem de um gozo explêndido para a difícil realidade foi demais para sua sanidade. Perdêra a noção da intensidade dos golpes com que Maria pedí­ra para substituir as carí­cias. Ela não aguentou...
Nos escuros labirintos de sua mente procura um caminho que o leve à almejada redenção, sem o mínimo sucesso.
-Jazia inerte, jazia inerte, jazia inerte...

"A lua cheia convida para um longo beijo mas o relógio te cobra o dia de amanhã
Estou sozinho, perdido e louco no meu leito e a namorada analisada por sobre o divã
Por isso agora o que eu quero é dançar na chuva
Não quero nem saber do que fazer, vou me matar
Eu vou deixar um dia a vida e a minha energia
sou um castelo de areia na beira do mar..."
(adulterado desavergonhadamente, porém, propiciamente)

18 abril, 2006

O Parto de um texto (ou Maquiagem e Morfina)

O ócio atormentado erige a pena que, seringa cheia de um suor que escorre por dentro, investe palavras contra a alvura do papel tornando-o mais puro na medida que macula.

O tormento provém do que fere a alma, sangra os princí­pios e derruba os dogmas tão arduamente construí­dos com a brisa que a musa, êmbolo precí­puo de tudo, forma simplesmente por existir.

A musa, parto inverso (nasce pra dentro), violenta a ví­tima cingindo a navalha que causa o corte, que causa a dor, que causa o texto, que se finge de cura.

Cura que entorpece ao mesmo tempo que vici­a.

Maquiagem que morfina,
Morfina que disfarça,
Morfina que vicia,
Morfina que me nina.

10 abril, 2006

Cicatrizes

Sim eu sei, vai doer.
A espera é angustiante. Chegará! Só sei que chegará.
O momento da incisão se aproxima a passos mornos. A navalha separará dois pedaços de carne tão confortavelmente unidos que, de surpresa, chorarão jorros de uma chuva rubra. Contarão pros nervos que devem levar o impulso inevitável ao cérebro, que interpretará e resultará no objetivo precí­puo de toda essa ação: a dor.
Ela virá. A certeza na iminência a eterniza. Já golpeio meu peito, tento acostumar meus nervos com dores menores para, na hora lancinante derradeira, estarem entorpecidos e não se surpreenderem tanto.
Não, não vou me machucar menos. Quanto a isso não alimento ilusões. A faca fere, a espera fere, a certeza fere.
Só espero que se possa viver com tantas cicatrizes.

06 abril, 2006

O tempo de uma lembrança

As lembrançs, aos poucos, vão se dissipando. Acompanham o esvaecer do teu cheiro no colchão, na toalha, nas minhas roupas e na minha pele.
Teus cabelos pelo chão são levados pelo vento que o tempo empurra impertinente pelo quarto. O resto de nossa última pizza comida no chão da sala apodrece na geladeira.
Os objetos que denunciam tua presença são, dolorosamente, colocados em seus lugares. O violão foi encapado, teus grampos de cabelo, antes espalhados por toda casa, foram agrupados e serão esquecidos na gaveteira. Teus telefonemas e mensagens na memória do celular são substituídos, pouco a pouco, por outros.

Mesmo assim, teus risos e gemidos ainda ecoam em mim. Teu sorriso de acanhamento ao me ver extasiado contemplando teu secar gracioso e peculiar de tuas longas pernas ainda resistem na penumbra do meu banheiro.

Mas as manchas no lençol, o qual me recuso a lavar, que pintamos com a mistura de nossos fluídos quando ainda explodíamos em gozos invejáveis, permanecerá. Pelo menos até o momento em que desistirei de esperar a tua volta.


"Cook me in your breakfast
And put me on your plate
'Cause you know I taste great"
Devendra

05 abril, 2006

Fadados

Ela veio assustada e me disse entre soluços:
- Mas não temos nada em comum. Você não percebe? Não concordamos em política, religião, música, em nada. Como construir algum tipo de relacionamento somente em cima de discordâncias? Nunca ouvi falar de um casal que tenha ficado junto além das primeiras trepadas sem ter nada em comum. Estamos fadados ao fracasso. Pra que adiar o inevitável? Pra depois sofrer mais? Nós deveríamos...
Não gostando do rumo da conversa e com medo da conclusão eu a interrompi:
- Nós dois gostamos de você. Poderíamos começar daí.

"Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim"

04 abril, 2006

O pastor de nuvens

Naquela terra distante o sol demorava em sua revolução, rolava pela abóbada celeste cheio de preguiça. Quando a pino, estagnava e todos juravam que, se não houvesse um mínimo impulso decorrente da inércia, voltaria a resvalar pelo lado que tinha vindo e acabaria se pondo no exato lugar em que tinha nascido. Ali existia um menino. Este menino gostava de ficar em cima de uma grande árvore velha e seca que existia perto de sua casa, quase no meio do vale. Ele ficava lá, observando por horas, perscrutava com tanta intensidade aquele céu azul enorme que só existe nas nossas lembranças de infância que chegava a ficar tonto. Seus olhinhos frenéticos percorriam todo horizonte, atento as montanhas que rasgavam o manto azul sem cerimônia. No inverno as nuvens agrupadas formavam uma única e enorme massa cinzenta que cobria o céu inteiro. Elas eram aquosas e enchiam o chéu qual uma taça invertida, imergindo os cumes e grande parte das montanhas. Não que o menino não gostasse, mas não eram essas que esperava. Essas eram ralas feito fumaça, apenas envolviam as montanhas, enfeitavam-nas com gotas brilhantes para depois abandoná-las. O que o menino esperava na árvore eram as nuvens do verão. Ah! Aquelas pequeninas e alvas, perdidas no céu imenso, essas sim eram densas o suficinte. Ele as acompanhava pelo trajeto que o vento impunha ditatorialmente com o coraçãozinho batendo forte no peito. Normalmente nada acontecia e a pequena nuvem desaparecia, levada para longe, por terras estranhas que o menino ficava a imaginar. Talvez fossem em direção à outros meninos que, como ele, gostavam de pastorear as nuvens. Vez ou outra, numa trajetória infeliz, uma nuvem encostava nos escarpados montes e ficava presa nas rochas potiagudas. Se emaranhava de tal forma que nenhum vento dali conseguia tirá-la e, se não fosse o menino, só se desmancharia em água quando o mesmo acontecesse a muitas nuvenzinhas e, condensadas, tivessem tamanho suficiente para proporcionar a vazão. Essa era a realização do menino, ele pulava da árvore e corria em direção a nuvem solitária.Corria por distâncias consideráveis e ladeiras íngremes, chegava exausto e entrava naquela imensidão branca que amenizava toda luz e ruído. Era um silêncio de todos os sentidos que inundava sua alma. Ele aproveitava por alguns minutos aquela paz tão esperada até começar a pular e agitar os bracinhos cada vez mais rapidamente. Empurrava a nuvem para todos os lados até que ela conseguisse se soltar e seguir sua viagem. Ele já tinha ficado muito bom e facilmente identificava o ponto exato que deveria ficar no meio da nuvem, o tanto que deveria saltar, para onde e como deveria mexer os braços. Com o tempo percebia facilmente as nuvens que descreveriam o trágico percurso e se antecipava. Conseguia chegar antes do choque ocorrer e as afastava das ameaçadoras pontas dos rochedos. Cada vez ele pulava mais alto para chegar antes às nuvens que ainda estavam muito longe do chão. Ás vezes, como o pulo era muito demorado, as nuvens o carregavam por certa distância, pousando o menino longe do ponto de partida. De tão alto que aprendeu a pular, seu pequeno vulto investindo contra o céu podia ser observado das cidades vizinhas, se tornando distração constante para as muitas horas de repouso dos cidadãos que gostavam de ficar vendo aquele menino brincar com as nuvens. Em um belo dia, cheio de nuvenzinhas arredias, o povo ria das peripécias do menino para dar conta de todas as desgarradas, quando, ao fim de um salto fabuloso, ele não desceu mais. Ficaram olhando para o céu por muito tempo e nem sinal do menino. Provavelmente foi carregado ou resolveu montar em uma nuvem mais robusta e conhecer os lugares que apenas passavam em sua cabecinha de menino. Não temos como saber.
Não me espantaria se ele acabasse aparecendo por aí. Aí mesmo, onde você está lendo essas palavras, devolvido a terra junto com uma chuva de verão e começasse a pastorear suas nuvens.

28 março, 2006

Amor de Skinhead

A promessa do seu corpo, com passos firmes ao atravessar a rua, vendia um ar decidido que comprei instantaneamente.

Olhei com mais atenção aquela figura que começava a destoar dos outros. Percebia que seus passos eram largos e diferentes, suas pernas obedeciam ordens próprias, independentes e dotavam seu caminhar com um aspecto engraçado, desengonçado. Aspecto esse que era desprezado por ela. Aliás, parecia que tudo o mais era desprezível, ela não se importava com ninguém, isso me encantou mais ainda.

Sentia os vapores ébrios retornando a minha mente pelada. Seria possivel? Imaginei que jamais me apaixonaria novamente.

Ainda é cedo, nem a conheço, mas todas as características que exibem o potencial da pessoa em impressionar são emanadas pelo corpo e podem ser percebidas a primeira vista. Nos primeiros momentos já se sabe o quanto aquela pessoa vai afetar sua vida. Da última vez que isso aconteceu eu soube, na primeira conversa, nos primeiros olhares, que ela foderia minha vida completamente.

E aqui estou agora. Já faz muito tempo, já tinha perdido as esperanças. Mas essa que atravessa a rua... pode ser.

Ela chega perto e pára ao meu lado.
Cumprimento com um menear de cabeça.
Ela sorri.

Merda. Estava tudo perfeito.
Ela não deveria ter rido dessa forma. Não demonstra segurança e indiferença. Não é assim que deveria ser. O sorriso fácil exprime uma abertura para minha investida que não deveria existir por enquanto. Não era para ela ser assim, a outra não era.

Jogo ela no chão e seguro seu pescoço com meu coturno.
Olho aquele rosto assustado antes de afundar o meu punho direito em sua boca.

Pronto. Sem os dentes da frente ela não rirá com tanta facilidade.

Agora podemos começar de novo. É, eu acho que me apaixonei.

"Eu tenho o mesmo segredo
Dos malditos solitários
Só a noite é minha amiga
A quem friamente confesso
A natureza noturna
Dos meus infernos diários"

20 março, 2006

O Previsí­vel Fim do Labirinto

Antônio pensou em respeito e calou, respeito não pode ser cobrado. De novo aquela sensação desagradável, todos bufões em torno dela novamente. O que mais o incomoda e que ela precisa deles, necessita dos giros e rodopios desses palhaços enrustidos encontrados em profussão pelos círculos por ela frequentados, sua infância perene exige toda aquela atenção.

O problema é que Tuca, ao contrário das outras, possuía o punhal específico que atravessava a armadura de Antônio construída solidamente de orgulho e prepotência. Tal punhal, feito do mesmo material, era habilmente manipulado por ela, que se deliciava quando o feria profundamente sem matar. O sangue grosso escorria do seu ego e molhava seus lábios quietos e, posteriormente, era bebido por ela.

Em busca da hipócrita e utópica idéia de equilíbrio e de que não deveriam se desviar dos sonhos individuais movidos pela paixão, acabaram se separando. Tuca se concentrara cada vez mais em seu trabalho e Antônio, numa de suas cada vez mais frequentes viagens, não retornou. Ainda se corresponderam por um tempo mas Tuca não suportava a ausência de Antônio e se traiu. Não, ela não traiu Antônio, ainda o amava, mas a companhia de seu amigo acabou sendo mais constante, estava fraca. O amor não resistiu à impressão de descaso causada pelo distinto seguir de rumos que cada um tomou.

O sangue jorrado do coração ceifado foi muito pior do que as pequenas torturas resultantes do lapidar de arestas que o relacionamento requeria, mas o orgulho dos dois era demasiadamente grande para perceberem a puta estupidez da decisão.

Antônio retornou ao alto do antigo pedestal de inacessibilidade e se imaginou, novamente, dono da situação e de seu destino. Trágico engano aquele, as mentiras caíram seguindo o lento folhear do calendário.

Não sonhava mais, o maxilar travara para qualquer palavra amena. A certeza da dor o privava de qualquer tentativa. Amaldiçava o destino que o conduziu à solidão perene.

Concentrava-se no ritmado ranger que sua cadeira de balanço provocava sobre o velho assoalho de madeira. Sua companhia eram seus livros, velhos discos e garrafas vazias de quase de todos os tipos de destilado que apinhavam o ambiente. A peculiar decoração (na realidade a falta dela) evidenciava seu passado de seguranças estereotipadas. Suas idéias e conceitos se mostravam toscos e desprovidas de personalidade quando, nostagicalmente, os imaginava entoados pelos sangrentos lábios da cruel companheira de outrora.

A verdade se perdeu nas linhas do acaso, a culpa existe mas não se pode identificar de quem, a traição aconteceu mas não se pode ter certeza de quando.

E o que mais incomoda, o que pressiona as lembranças a adquirirem um peso sufocante, esmagador, é que tudo poderia ter sido diferente.


"Eu uso óculos escuros, pra minhas lágrimas esconder"

10 março, 2006

He's got the whole world in His hands

Contemplo as mãos.
Alvas, sem calos ou pelos, dedos longos. Mãos de pianista minha mãe falava.
Mãos que já deram prazer e ofenderam. Mãos que já acariciaram seios e clítoris, secaram lágrimas e fizeram chorar.
Mãos que já fizeram gestos obscenos e se chocaram violentamente contra rostos, criaram coisas do nada e destruiram.

Mas, apesar de tudo, elas sempre foram desprovidas do poder que agora têm.
Na verdade nunca almejaram o poder.
Por isso quando as contemplo seguindo braços acima, percebo que ainda estão ligadas ao meu corpo mas não consigo sentí­-las como parte de mim.

Sinto como se elas fossem enxertadas, fizessem parte de alguém que decide, que participa. De alguém "intenso".

Observo esse outro me observando, me criticando. Percebo que ele me julga e condena. Para ele não existe meio termo, para ele existe uma verdade absoluta, uma sentença.

Rio assustado sem tirar os olhos das mãos. Percebo as unhas roídas, as dobras, as pintas e todas as características mí­nimas que as tornam únicas. Viro e observo de outros ângulos, afasto e aproximo do meu rosto. Veias, carne, peles e unhas. Um mecanismo complexo e bonito.

Uma está aberta e a outra fechada.

O poder vem de uma extensão da mão fechada. Do extremo. Onde acaba a carne e se torna metal. O metal acaba e se torna pólvora. Onde a pólvora acaba e se torna solução.
Sinto o frio pressionando minha têmpora. Fecho os olhos porque não há mais nada para ver.

Ainda ouço o estampido começar e, imediatamente, cessar.

Nunca toquei piano.

07 março, 2006

"Gripe aviária em gatos aumenta preocupação"
Yahoo, 07/03/2006

Verdade, também me preocupa. Quem perceber algo estranho nesse enunciado ganha uma galinha resfriada.

03 março, 2006

Da beira que se habita

Jaime ia em direção ao serviço pensando facas. Seguia seu costumeiro caminho que passava por um pequeno bosque enquanto se concentrava em tentar esquecer.

Sua mente estava torta, comum já que procedia uma ébria noite. Flashes de bizarros acontecimentos são disparados à todo momento e Jaime, inutilmente, tentava anulá-los.

Ele cantava músicas aleatoriamente para tentar não lembrar, falava sozinho, cada vez mais alto, tentando suplantar aquela voz irritante que berrava dentro dele e com quem, constantemente, discutia.

Apressa o passo, acha que com a velocidade poderia se afastar de seus fantasmas.

Falando sozinho e andando depressa, Jaime atraía olhares desconfiados. "Louco" sentenciam no bater do martelo comum feito da soma de seus medos. Vozes distantes o mediam. Vozes tão distantes e inúmeras quanto corretas, como sempre é a unanimidade. Vozes tão ridículas e inúteis quanto burras, como sempre é a unanimidade.

Jaime habitava a beira de um precipício vertiginoso e o vento emanado pelo forte hálito de suas não convicções o embalava e, perigosamente, aumentava. Ele percebia a iminência da loucura daquelas profundezas como algo tão palpável a ponto de sentir seu gosto. A clareza da realidade fugia ao seu senso de forma que as coisas e sensações não conseguiam adquirir a consistência suficiente para serem definidas como tais. Tudo era de matéria gelatinosa, tudo poderia desmanchar a qualquer momento. Toda a eternidade de sua vida (não se lembrava do começo, poderia não haver, existira sempre. E poderia não ter fim, nunca tinha morrido) poderia não ser nada.

Não interessa nada que não provenha dela, jaime agora, pensa dúvida. Sangra a boca de saudade e esvaece seus espectros. Sente sua presença de uma forma tão real que o assusta a ponto de procurá-la em volta.
Não queria pensar tanto nela, mas ele não é forte. Tudo que é está diferente perante ela. Sente vergonha do que foi, dessa eternidade insistente da noite passada.

Mas, pobre Jaime, ela nem sabe seu nome.

"...e cada qual no seu canto e cada canto sua dor..."