04 novembro, 2014

o beijo


Então ela entrou no carro e o beijou. Não no rosto, que demonstraria o social do cumprimento entre duas pessoas que se encontram uma primeira vez e irão se conhecer para identificar algum tipo de empatia, que seria a realidade do momento. O beijo dado antes de qualquer palavra proferida, foi o de línguas entrelaçadas demonstrando claramente a carne prontamente cedida e não negociada.

Entrou nele ao mesmo tempo que no carro. O carro, como tudo nele (o apartamento, os queijos, o vinho, a cama e ele próprio) era preparado justamente para isso. Era tão acostumado com a impressão que causava nas mulheres que buscava que em nenhum momento temeu a recusa de sua investida imediata, sabia que no simples consentimento em sair com ele já estava implícito o acordo. Jamais passou pela sua cabeça que ela pudesse se ofender por uma demonstração tão grosseira de sexo sem antes nunca ter tido contato com a pessoa e, para sua sorte, ela demonstrou que não era diferente. Era pura e simplesmente aparência, não se importou no que muitas diriam ser considerada puta pelo desconhecido, justamente o contrário, assim agiu.

12 junho, 2014

Não tenho tempo ou paciência para prisões.
Quando são os olhos que tem fome, não tem comida que sacie

13 março, 2014

Gia

Estava fazendo arroz no fogão improvisado quando Gia me disse que havia lido algumas das minhas anotações. Não havia lhe dado permissão para isso, já estava começando a me fartar daquelas invasões de privacidade que estavam se tornando cada vez mais constantes. Deixei-a falar. Comentou que eu havia escrito sobre antigas mulheres que passaram em minha vida, disse que alguns textos provavelmente se referiam a seduções atuais e que ela não estava disposta a ser enganada. Que diferença da mulher que conheci, liberal e independente, pensei. Falei que produzia contos e que não é por estar escrito que eu havia vivido realmente aquilo, comentei sobre a síndrome de Zuckerman citada por Rubem Fonseca em algum de seus romances (e que provavelmente ele mesmo inventára) que era justamente a confusão que os leitores faziam imaginando que toda peça literária é a descrição real de algo que acontece na vida do escritor. Não disse mas pensei, sobre o comentário de não querer ser enganada, de novo o amor como expressão máxima do egoísmo (imperceptível para quem sente). Gia balançou a cabeça sinalizando que havia entendido mas permaneceu nervosa enquanto eu continuava a cuidar do arroz. Você não pode ter tudo, ela me disse, ninguém tem. Escolha: eu ou o resto? Respondi que isso não era escolha, o tempo que temos nessa vida é muito pouco, não existe como optar por algo em detrimento do resto, independente do quanto se ama essa coisa. Disse que ficava impressionado com o fato dela não perceber a crueldade daquilo, que ninguém que tenha a mínima preocupação com a outra pessoa poderia pedir o abandono do resto do mundo. Ela respondeu que todo mundo é assim, que é como as coisas são e que eu que era anormal. Respondi que realmente eu não sou todo mundo e que não considerava a comparação com o resto da humanidade um ponto argumentativo válido. Comentei que achava aquilo uma pena tão grande pois tínhamos a possibilidade de ser um casal livre e feliz. Relacionamento e liberdade para ela eram antíteses, situações antagônicas e impossíveis enquanto, para mim, era a única forma de relacionamento que poderia dar certo e que me permitiria ter. liberdade é relativa, bradava, a minha noção de liberdade é diferente da sua. Liberdade é eu não lhe impedir de fazer algo que queira e vice versa, não existe variação de interpretação para isso, comentei cabisbaixo.


Acabei queimando o arroz quando comecei a ficar triste imaginando o mundo inteiro abdicando de tudo por uma simples questão de egoísmo e falta de autoconfiança infantil, tinha começado a olhar para a hipnótica dança das labaredas entre os tijolos e acabei esquecendo da panela. Comemos em silêncio e fui me deitar, não percebi se e quando ela foi pra cama.

Fui embora no dia seguinte em uma manhã fria mas muito clara. Via o céu ainda deitado em minha cama e lembrei de quando cheguei em Formentera, era o mesmo azul de claridade ofuscante daquele dia. Gia não estava mais ao meu lado, já havia se levantado e partido para algum lugar que eu ignorava. Seu lado da cama estava frio, indicando que estava ausente há algum tempo ou sequer houvesse se deitado. Levantei-me e peguei um resto de biscoito que ela havia deixado ao lado da cama, claro que o pacote estava aberto e as bolachas murchas. Peguei uma metade já mordida, uma assinatura daquela boca que tanto invadi com minha língua. Cheirei-a cerimoniosamente e encostei a ponta da minha língua na beirada dentada, lembrei-me dos nossos primeiros beijos e tentei sentir o seu hálito matutino naquela metade de chocolate. Claro que não senti nenhum gosto além do forte doce, mas aproveitei a nostalgia que aquilo estava me despertando. Devorei o biscoito de uma vez, levantei-me e fui, sem camisa, me espreguiçar do lado de fora. O contraste do vento frio com o calor do sol em minha pele me fez encher o pulmão daquele ar que fora meu companheiro por tanto tempo. Despedi-me olhando tudo em volta, como sempre atentei aos detalhes que deixaria de ter a disposição diariamente a partir daquele momento: as pichações, a roda d'água barulhenta, todos os trincados decadentes daquela construção que havia invadido há alguns anos e o imenso azul de mar e céu que tão bem me fizeram. Dei uma volta pela parte externa da casa e pensei comigo mesmo que já era realmente a hora de seguir adiante. Tirei de dentro da minha mochila um livro que havia conseguido em troca de outros no sebo do bairro, Xaviera Hollander, uma obra picante que já havia lido quando adolescente garimpando a empoeirada biblioteca dos meus pais em Campo Grande no distante Mato Grosso do Sul. Contava a vida real de um prostituta de luxo e, segundo as descrições na parte de trás do livro, havia sido um best seller em sua época. Peguei meu lápis e escrevi na primeira página “para minha puta”, logo abaixo da marca afundada no papel que assinalara o nome de um antigo dono e que fora apagada pelo sebo. Apesar dela não ser mais a “minha puta” não queria me despedir da pessoa que havia se tornado mas sim da pessoa extremamente importante que ela havia sido e que, agora, eu deixava. Sabendo que sentiria uma falta tremenda de Gia, coloquei o livro sobre o colchão de lençóis desfeitos e fui embora carregado umas poucas peças de roupas e alguns livros.

Viciado em mar comprei passagem só de ida para uma outra ilha em outro país e, durante a viagem, acabei sabendo que o aeroporto onde desceria seria o mesmo onde aconteceu o maior acidente aéreo da história.