29 dezembro, 2008

Então é Natal

Jingle Bells, ou algo assim. Luzinhas, árvores e um pedófilo de vermelho. Chegava a época consumista, aquele período que, junto com o fim de ano, são os mais deprimentes, pois nos obrigam a sermos felizes e, justamente por isso, nos mostram o quanto somos miseráveis. Só sei que era véspera de natal e o passaria sozinho novamente. Morrendo de pena de mim mesmo, resolvi fazer uma boa ação e me livrar das moedinhas que guardava em uma lata velha que ficava em cima do meu guarda roupas. Peguei-as todas e enfiei-as em um saco vermelho, mais papai noel que isso impossível. Era um saco pequeno e eu havia juntado muitas moedas, então o pedaço de pano ficou estufado, devia haver mais de R$ 50. Dei um nó na ponta e sai com aquele trambolho na mão, não cabia no bolso.
Saí do prédio e olhei em volta, ninguém. Caminhei um pouco pelo canteiro central da avenida logo em frente. Sabia que não precisaria ir muito longe para encontrar um indigente. Mais um pouco e lá estava ele, sentado no chão, entretido em contar algumas pequenas tampas de refrigerante em sua mão.

- E aí?

Ele continuava completamente compenetrado, nem me deu bola. Resolvi insistir.

- Amigo!

Ele fechou a mão protegendo as tampinhas e me olhou com uma cara de aborrecido. Parecia que o estava incomodando no meio de uma ação muito importante.

- Amigo o caralho. Que tu qué?
- Hei, calma aí. Quero te dar uma ajuda. - Tilintei o saco vermelho na frente dele.
- Mmmmm. Manda aí.

Joguei. Ele, em um movimento impressionante pela sua condição, agarrou o pesado objeto no ar e começou a inspecioná-lo. Jogou as moedas junto com as tampinhas de garrafa, olhou por um breve momento e guardou tudo de volta no saco.

- Uau. Camaradinha, tu realmente tá precisando de ajuda.
- Hein? Eu já tô indo amigo, se diverte aí e toma tuas cachaças.
- Mas tu é mesmo muito prepotente né?
- O que eu te fiz? Acabei de te dar um puta presente e você me vem com um monte de ofensas?
- Chegado, tu tá muito iludido. Essa história de altruísmo não existe. Nada acontece sem haver algum motivo, alguma troca. O que você está fazendo não tem nenhum outro alvo a não ser você mesmo. Esse é o problema de vocês todos, estão com o nariz tão empinado que não conseguem ver nada além do céu. Não existe nada mais prepotente e egoísta que a caridade. Você precisava ver a cara de satisfação do povo do abrigo quando me deram um banho, me cortaram o cabelo e barba na última vez que fui lá. Nossa! Como eles achavam que estavam me fazendo bem. Quase vomitei com tanta presunção. Vocês não tem a competência de enxergar nem um milímetro adiante do próprio ego. Quando eu falei que deveriam me agradecer por deixar que eles fizessem aquilo comigo, me colocaram pra fora. Por isso nosso pessoal não gosta de ir lá.

- Até que te entendo.
- Será? Isso que você fez teve algum motivo, geralmente vocês tentam comprar uma consciência limpa. Nós não representamos nada mais que seus sonos tranquilos à noite.
- Tá, tá, concordo contigo. Eu tenho noção dessa podridão toda.
- Bom, voltando as moeditas. Não te incomoda que eu gaste tudo isso aqui em cachaça?
- Na verdade importa, sim.
- Tenho todo o direito de receber sua caridade, desde que me comporte igual a você?
- Não doido, calma. Me incomoda por que não me convidou.
- Hahahahaha! Ok, Playboy, bóra beber.

Saímos da avenida principal e começamos a andar por becos. Chegamos a uma espelunca que tinha uns três gatos pingados, isso já contando com o dono do bar. Devia conhecer meu acompanhante pois, de cara, nos encheu dois copos da cachaça mais vagabunda que eu já experimentei.

Tomamos umas cinco doses em silêncio, rezando nossa prece de retirada. Nada mais prático do que a bela fuga da realidade que o sagrado álcool nos concede. Compramos ainda um barrilzinho de plástico com pinga e açúcar, nunca tinha visto aquilo antes. Ele me falou que é específico pra alcoólatras, muito prático e barato. Ele chamava o recipiente carinhosamente de "corotinho" e o abraçava como se fosse um bebê. Eu já estava completamente bêbado quando ele me intimou:

- Paga aí, playboy.
- O caralho! Já te dei toda minha grana.
- Não vai me dizer que esse saco de moedas é toda tua grana?
- É.
- Você é um miserável. Faz quanto tempo que tá juntando essas moedas?
- Sei lá. Uns três anos, eu acho. Seguinte! Meu dinheiro é extorquido antes mesmo que eu consiga colocar minhas mãos nele e...

Comecei a olhar preocupado em volta. A voz começou a sumir dos meus lábios e voltei a enfiar minha cara no fundo do copo.

- Chora playboy, continua chorando. Conta aí, não pára não.
- Posso não. Vai que alguém escuta essa conversa. Tá cheio de gente mau caráter por aí que fica gravando a conversa dos outros pra usar contra na primeira oportunidade. Se aproveitam que você está relaxado em um ambiente familiar, calmo e pessoal, registram tudo, deturpam e te transformam no pior dos canalhas.
- Tu é paranóico, é? Que papo é esse? Não tem ninguém por aqui!
- Meu amigo, se você tivesse passado o que eu já passei, não confiaria em ninguém.
- Eu não confio em ninguém. Tu tá bêbado, meu amigo relaxa, aqui você pode falar o que quiser sem ninguém te julgar, aliás, pelo menos isso ainda podemos fazer, pensar o que quiser, sem ter que dar satisfação a alguém.
- Aí que você se engana camarada, já cai nessa. Tô falando, idéias diferentes assustam, principalmente esses malditos conservadores hipócritas, acostumados ao calor aconchegante da ausência de pensamentos.
- Isso eu sei, a famosa "benção da ignorância".
- É, a comodidade da estagnação.
- Mas gravar conversas é ridículo. Como eu disse, você tá paranóico.
- Ridículo é, mas...

Então reparei em um homem de paletó encostado na porta que me olhava de soslaio e anotava algo em uma caderneta. Fiquei agitado, com medo.

- É isso, preciso ir embora.

Arranquei o "corote" do camarada, dei um adeus tonto e saí trôpego em direção a minha casa ao som do meu ex-amigo bêbado que me xingava pelo roubo da bebida. Pelo menos eu achava que era a direção da minha casa. A última frase que escutei foi "Paranóico filho da puta".

Segui então pela noite escura, não percebendo o vulto de paletó que acendeu um cigarro, saiu do bar e começou a, sorrateiramente, seguir os meus passos.

Nunca mais voltei pra casa.

JigleN bells.

11 dezembro, 2008

Íntimo

Carta antiga sem resposta.

Em determinadas noites, quando presenças estrangeiras, que por algum motivo não posso assediar, invadem minha casa, eu cedo minha alcova solitária e o colchão virgem.
Nessas noites, geralmente quentes ou frias demais (pois eu, cuspido morno nessa vida, já tive meu impossível tempo de extremos), quando corre a lua no céu imenso que enfeita minha pequena janela, pego o velho colchão que habita embaixo da minha cama e o jogo no chão do quarto abandonado, e lá ele fica, amassado entre os móveis do espaço exíguo. Deixo-o nu e deito-me naquela vala antiga, deformada na espuma por corpos pesados em sonos difusos nas manhãs lentas de tempos passados. Dias preguiçosos onde tua presença, fugida da universidade, abria meu portão com um barulho nostálgico que me acordava feliz. Teu vulto, talhado no sol que entrava pelos vidros da sala, invadia minha cama pelo pé, levantava minha coberta e se aninhava, quente de rua, em meu peito sonolento. De pés trançados fodíamos o mundo.

E então, algumas vezes nessas noites, deitado no colchão sujo de nós dois, eu lembro.

16 novembro, 2008

Da brevidade das marcas de um corpo

...e foi então que ela veio me falar sobre coisas breves e também sobre outras duradouras, discorreu sobre o que é pequeno e grande. Medidas que aprendemos quando crianças, cuja noção perdemos no decorrer do tempo. Inicialmente tudo é eterno e enorme, conforme crescemos a mediocridade e brevidade nos acostumam, nos fazem ficar entorpecidos e não mais nos damos conta da real magnitude das coisas.

Ela me disse que, com o espírito viciado e podre, perdemos completamente a percepção das medidas. Como imergimos na pequenez, a adotamos como grandeza e a brevidade como duradoura. Vemos sofrimento e felicidade em nosso insignificante cotidiano, vivemos esperando a aposentadoria, uma pensão, um bônus no fim de mês, uma trepada ou uma gravidez de fim de semana. Me disse que, para ela, houve um tempo que se deparou com algo grande e eterno, e que o susto do despertar foi imenso. Foi quando conseguiu ver todo futuro e passado de uma vez só, como realmente são. Perdeu todas as certezas e dogmas e então caiu em um transe profundo de um absolutismo antes impensável. Contou que a maioria tenta alcançar tal estágio entrando em religiões e partidos políticos, mas ela o conseguiu em toda a sua verdade e plenitude.

Ela me falou sobre coisas pequenas, coisas simples, algo como manchas de pele e tatuagens, enfim, coisas que duram pouco. Mas ela me falou também da grandeza de outras coisas, que não duram apenas a brevidade de uma vida.

Foi então que ela se calou, me entregou uma carta e um livro, virou e então gravou eternamente em minha memória os tristes sons daqueles passos indo embora.

29 abril, 2008

14 abril, 2008

Seu Aloísio

Então, de repente, nessa manhã de segunda, Seu Aloísio resolve não mais acordar. De cima de seus 95 anos ele olhava o resto do mundo a sua volta vestindo um par de olhos embaçados pela moral cristã que não entendiam aquele mundo estranho formado junto com suas rugas.
Em sua última noite, deitado na cama antiga, lembrava dos anos em que transformava as coisas, tempo em que caminhava por lugares ermos de histórias indizíveis. Trilhas de um brasil antigo, onde apareciam cachorros protetores que o acompanhavam nas jornadas fantásticas e onde presenciou misteriosas explosões em céus noturnos. "Foram tantos caminhos, tanta terra, tanto mato, tanta vida" lembra. Olhou ainda ao lado da cama e, por um momento, visualizou de relance a Dona Norma, sua companheira já falecida há algum tempo. Esticou o braço para tocá-la mas ela, tímida como sempre, se afastou daquela conhecida mão de dedos longos. Conversou com ela, riram se lembrando da primeira sela que ele fabricou especialmente para a noiva. Era uma sela lateral pois as moças daquele tempo somente usavam vestidos e assim cavalgavam, sendo que ele jamais entenderia outra moda. Comentava com sua voz grossa e seu agressivo sotaque alemão sobre os novos e absurdos costumes de mulheres de calça comprida e homens de calça curta.
Então ele aspira o ar parado do quarto e imagina sentir, por um momento, o cheiro de madeira recém talhada. Cheiro este que o acompanhou a vida inteira, madeira que o obedecia com devoção, que entortava e tomava forma naquelas mãos ossudas, naqueles braços magros que deixavam expostos músculos arduamente trabalhados na lida com o campo. Músculos que ele gostava de exibir para as crianças que olhavam atônitas aquele velho ancião com a força de um touro.
O tempo passou, a força se foi. Agora tudo o cansa em demasia, até as lembranças o estão estafando. "Bastam de fins de semanas" ele pensou em seu último domingo, "cansei dos dias arrastados, já fiz demais por aqui"disse enquanto, na última de impensáveis quantia de vezes, cerrava os olhos.
E lá foi seu Aloísio, com histórias que jamais sonharíamos e, nem na mais prepotente fantasia, vivenciaremos. As levou com ele, pois nunca demos a correta atenção enquanto ainda tínhamos tempo.

Beijo Vô.

03 abril, 2008

Mulheres interessantes

Me perguntaram uma vez o que seria uma mulher interessante. Não vou discorrer sobre isso aqui, mas digo que deve ser algo parecido com a personagem "Juno", do filme de mesmo nome, adulta mas sem ter se tornado uma pretensiosa insuportável.

10 março, 2008

Lua Mineira




...e foi quando, no meio de um céu deveras tempestuoso, nasce a Luna mais linda que eu já vi.

09 janeiro, 2008

"Toda saudade é uma espécie de velhice"

Das coisas antigas e poeirentas desse meu passado, existem relíquias que ainda insisto em remexer. Relíquias banhadas por uma beleza irreal que só as coisas velhas, prestes ao esquecimento, possuem.

Este brilho que no tempo que deveria ter sido não existiu me embriaga momentaneamente enquanto tento fugir um pouco do meu presente ainda vazio. Do fundo de minhas rugas pego o maravilhoso parto do meu filho, disseco aventuras infantis e retorno a amores passados.

Algumas das minhas vergonhas tento empurrar bem ao fundo mas, feito graveto em correnteza braba, afundam momentaneamente sempre voltando à tona. Meus óculos refletem nuvens que há muito já passaram, nublam minhas vistas com águas presentes de rios antigos.

Com a ponta do meu dedo sangro palavras na tábua da mesa que cede com o peso de minhas ruínas. Uma carta de felicidades simples e pensamentos complexos, tudo já apagado. Mas isso não me incomoda nem um pouco, sempre percebi a beleza da fugacidade.

Fecho a carta com uma língua de 100 anos de idade.