13 dezembro, 2007

O pacote

Então eu fico aqui, rastreando minhas encomendas através da internet. Ótima invenção essa, entro no sitio dos correios, coloco o código e posso saber exatamente como os produtos que pedi caminham tranqüilamente para minha casa. No momento tenho charutos de São Paulo e cervejas de Blumenau vindo em minha direção, vejo todo o seu percurso na tela do meu computador. Já comprei vários produtos de todo canto do Brasil, mas tem uma encomenda que foi internacional, e essa eu não recebi, despachei. Me lembro da emoção que foi aquilo, lembranças para alguém tão distante, pedaços de mim tão dolorosamente juntados e ali aglomerados, no fundo daquela caixa.

Com esperança enviei o pacote, pois dentro dele havia uma ajuda ao vício do destinatário, vício duramente interrompido pelo câmbio do país destino, por isso enviava com a caixa um pouquinho da minha doença. Mas não teve jeito, através do código percebo que o pacote chega em são paulo, demora alguns dias e toma o caminho inverso, retornando a mim. Não adianta, o pacote de cigarros não passou pela alfândega. Finjo ignorar as leis e me faço de assustado, pergunto para a atendente do correio se vou perder o dinheiro ou ainda posso utilizar a encomenda caso retire os cigarros e deixe o restante do conteúdo. Por sorte ela me libera e então troco os cigarros por mais um livro.

Agora sei que ele deve percorrer o caminho corretamente, não há nada mais de ilegal ali dentro. Acompanho emocionado o torto percurso que o pacote vai fazendo antes de chegar ao seu destino. Fico imaginando ela recebendo o aviso de que algo chegou, visualizo-a indo ate la, abrindo a caixa com dedos duvidosos, sorrindo saudades...

Mas algo acontece, ou melhor, não acontece. O sitio dos correios fica estático durante dias, sempre a mesma mensagem, aquele maldito aviso de que a encomenda chegou, nunca mudando para encomenda entregue. Demorei 3 semanas para perceber que a mulher que havia partido, a mulher que eu entreguei ao exterior, não existia mais. Ela havia ido além das fronteiras imaginadas e alcançáveis por mim.

Sentado neste computador eu fumo meus charutos paulistas e bebo minha cerveja blumenauense. O correio ficou caminho só de vinda, de mim não sai mais nada. Agora quase não me lembro mais das cartas de felicidades podres e livros de palavras velhas que devem estar mofando em um depósito frio e escuro, abandonado em um canto qualquer de um pais distante.



"Não me pergunte
Não me responda
Não me procure
E não se esconda
Não diga nada
Saiba de tudo
Fique calada
Me deixe mudo
Seja num canto
Seja num centro
Fique por fora
Fique por dentro
Seja o avesso
Seja a metade
Se for começo
Fique à vontade"

Walter Franco

26 setembro, 2007

Sonhos

É horrível acordar no meio de um sonho, fica tudo confuso por um tempo enorme.

Hoje foi assim que meu dia começou.

O apito insuportável do celular interrompendo um sonho que não lembro mais a respeito de que era. Só sei que seus personagens se libertaram e estão até agora correndo em volta de mim.

São muito imprudentes estes personagens, um até se machucou coitado. Engraçado é que, fora daquela atmosfera densa da minha cabeça, eles ficam fluidos e rápidos, muito rápidos.

O ônibus que eu peguei não estava muito cheio, mas os passageiros estranharam quando entrei com aquela turba disforme. Alguns velhos, mais sábios, entenderam prontamente a minha situação.

- Acordou no meio de um sonho, não é meu filho? - Perguntou-me uma senhora.
- Sim. E agora? Como me livro deles?
- Não tem jeito. A unica coisa que pode fazer é esperar passar, e isso acontecerá quando você acordar completamente.

Agradeci o conselho e segui adiante.
Na roleta o cobrador faz uma cara feia mas não me pediu para pagar a passagens para aqueles entes que, neste momento, já voam por cima dele fazendo um puta estardalhaço.

Eles me deixam tão emputecido que, quando desço do ônibus em frente ao meu serviço, esqueço de colocar os pés no chão.

- Que burrice. Imagina se me vêem chegar assim, que vergonha. Agora sou chefe, não posso mais fazer isso. - Só consegui formular esses pensamentos quando já estava, distraidamente, andando por cima das últimas folhas de uma linda árvore azul. Voltei ao chão e entrei no meu serviço dando bons-dias enrubescido, morrendo de vergonha das indiscrições causadas por minhas companhias, que insistiam em misturar os crachás que a recepcionista estava, em vão, organizando na portaria e, outros, tentavam roubar o revolver do assustado guarda.

Vou direto à mesa de café, encho um copo dos grandes e esvazio tudo dentro da garganta. O máximo que acontece é que, além de uma queimadura, meus sonhos ficam um pouco mais tênues, mas nada de desaparecerem.

Sento diante do meu computador mas fica difícil me concentrar com essa multidão me rodeando, então resolvo passar um pouco do tempo escrevendo em meu empoeirado blog. Agora estou aqui sentado, compondo este texto, com um espectro que constantemente muda de fisionomia berrando em meus ouvidos frases ininteligiveis enquanto outros pulam loucamente de baia em baia. Um cavalo lá fora, com as pernas finas e enormes qual um quadro de Dali, passa pela janela e assusta os urubus.

Percebo que eles estão ficando um pouquinho mais transparentes, estão esvaecendo. Neste momento o personagem ao meu lado assume uma conhecida fisionomia. Eu não lembrava dela presente em meus sonhos, pelo menos não ultimamente. Uma presença que me impregna de melancolia mesmo sem a ter reconhecido por completo ainda. Um rosto de simetrias e quinas angulosas que ainda, de certa forma, me fere. Mergulho fundo naquele olhar antigo e já morto. De repente começo a ver algo se movimentar neles, algo que gira. É o relógio da parede cuja imagem começa a aparecer por tras da névoa de que ela é feita. Todos desaparecem e percebo que, agora, acordei.

- Bom, quem sabe agora consigo produzir alguma coisa.

O que me preocupa é que o coitado do meu filho carrega essa mesma amaldiçoada sina dos notívagos, a de nunca ter sono, por mais tarde que seja, de só despertar depois de já estar há muito tempo de pé e a de ser perseguido por seus sonhos mais do que persegui-los.

25 setembro, 2007

Ítalo Calvino

Uma das coisas que me estimula é saber que existem muitos autores bons a serem, por mim, descobertos. É uma surpresa deliciosa iniciar um livro despretensiosamente e ser envolvido inteiro pela escrita. Ítalo Calvino foi um desses casos. Sempre soube que a ignorância é uma benção e, por isso, sempre agradeço meu conhecimento e interesse literário não formal, sempre me colocando em frente à fabulosas descobertas.

Ah, uma coisa que me desestimula é a consciência de quanto eu estou emburrecendo, e de forma vertiginosa. Meus escritos, em minha profissão ou por lazer, estão medíocres e desaparecendo, não possuo mais nem um resquício de meu antigo ímpeto. Talvez me faltem os motivos, talvez isso seja bom. Já comecei a me recolher em meu antigo e solitário mundo, talvez tenha que acelerar o processo.


  • Calvino, Italo. O Barão das Árvores
  • 21 setembro, 2007

    You're breakin' my heart, so fuck you

    Chega um tempo estranho, em que se percebe a vida como pontual. Pontual não no sentido cronológico, pontual no sentido de ponto, de pequeno, de único. Todos corremos tentando preencher essa porra de existência com horários e compromissos para tentar torná-la significante, quando esse esforço imenso, essas alegrias miseráveis, não passam de mera ilusão.
    O que realmente importa, o que realmente nos afeta geralmente não passa de algo muito específico, único, e isso carregamos por todas essas firulas que criamos para matar o tempo.
    Esse algo nos acompanha independente e separado de todo o resto, não adianta mudar de vida, não adianta ficar rico, trocar a viajem de ônibus por pedantes viajens de avião, fugir para outros paises ou alcançar um suposto sucesso profissional, não adianta se esconder em uma caverna na eterna solidão prepotente nem encher a casa de amigos risonhos e imbecis, você carregará aquilo junto. Seja na espanha, seja em um congresso que ministras, seja em outros vários relacionamentos, seja em um texto que, teoriamente, é direcionado a outra pessoa. Sempre ali no fundo, naquela vesga de lembrança ele aporta. Uma música é lembrada perdida dentro daquele ipod sempre desprezado, uma idéia que precisaria ser compartilhada, ou nas linhas que nos esforçamos imensamente para falar de algo mas, no final, percebemos que a maior parte do texto esta realmente falando de outra coisa.
    E a isto estamos fadados, a correr atras de algo partindo desesperadamente no sentido contrário.
    E nisso nos perdemos e nos enganamos.



    "You're breakin' my heart
    You're tearin' it apart
    So fuck you
    All I want to do
    Is have a good time
    Now I'm blue
    You wanna boogaloo
    Run down to Tramps
    Have a dance or two--ooh!
    You're breaking my heart
    You're tearin' it apart
    But fuck you"

    23 agosto, 2007

    Oh, l´amour

    "Agora percebia que minha Justine havia sido realmente a criação de um ilusionista, sustentada por uma estrutura defeituosa composta de palavras, ações e gestos mal interpretados. Ninguém era culpado; o verdadeiro responsável era meu amor, que inventara uma imagem da qual se alimentar. Também não era uma questão de desonestidade, pois a pintura ganhou suas cores de acordo com a necessidade desse amor. Amantes são como médicos, disfarçam o amargor de um remédio para torná-lo mais palatável."

    20 agosto, 2007

    Margaridas verdadeiras

    Queria saber o porquê disso agora. Depois de tudo superado esses sonhos recorrentes com margaridas verdadeiras.

    De novo as noites insones e agitadas, molhadas de um suor gelado e um cheiro impregnante de traição. O lençol jogado no chão, a cama nua, despedaçada pelos movimentos violentos de minhas ânsias libertárias frustradas.

    De volta o gosto rançoso de sangue velho.

    Como se já não tivesse problemas suficientes.


    Na foto margaridas verdadeiras da espanha.

    10 agosto, 2007

    Parenteses

    Ainda padeço, do mesmo mal que me faz coadjuvante (o meu pouco de normal)
    ainda tenho a mesma paixão que me faz tão igual (inúmeros outros)
    ainda assisto aos mesmos vídeos (com minha parca paciência)
    ainda escuto as mesmas músicas (odeio música)
    ainda sinto os mesmos gostos (apesar de nunca ter tido paladar)
    ainda beijo a mesma boca (não tendo mais sangue)
    ainda fecho a mesma porta, com as duas paranóicas voltas (não tenho mais casa)
    ainda espero a batida do portão (sem namorada)
    ainda não arrumo a cama (meus lençóis continuam sujos)
    ainda percorro os mesmo caminhos (não trabalhando mais lá)
    ainda procuro os mesmos cartazes (não conhecendo ninguém que saiba escrever)
    ainda vejo o dragão fechar seu olho no eclipse (sendo cético)
    ainda rôo minhas unhas (meus dedos acabaram)
    ainda frito meus bifes gordos (em meu colesterol)
    ainda colo minha tatuagem recém feita em meu colchão inflável (furado)
    ainda trepo de olhos abertos (não vejo mais nada)
    ainda desenho (sem mãos)
    ainda toco minha gaita sozinho (sem fôlego)
    ainda sopro a fumaça do meu cigarro pelo canto da boca (pra não acertar o vazio ao meu lado)
    ainda expurgo meus palavrões (meu vocabulário)
    ainda necessito de pequenas doses de embriaguez pra viver (em meu emprego público)
    ainda escrevo minhas respostas (em meu silêncio)


    Enquanto eu nunca (Eu ainda)

    02 agosto, 2007

    Mulheres desinteressantes



    Estava conversando a respeito de alguns filmes e o famoso Jules et Jim foi citado. Esse é um dos filmes hors concours que eu detesto.

    Minha forma de medir o quanto gostei do filme é somente imaginar minha vontade de assistí-lo novamente e, no caso de Jules et Jim e Kill Bill entre outros, quando preciso fazer uma força sobrenatural para ficar até o fim, quer dizer que odiei.

    Não procuro fazer uma racionalização em cima dos meus gostos como fazem muitos cinéfilos (termo que me incluo no oposto), apenas gosto ou não gosto. Não possuo a pretensão de que alguém tenham a mesma impressão que eu, ou em influenciar para tal.

    Porém acho que percebi o que não me convence no caso Jules et Jim, e é o mesmo que não me desanimou no livro do Lossa, Travessuras da Menina Má. Ambos são construídos em cima de um interesse do personagem principal sobre uma moça, e essa moça não me convence, é completamente desinteressante, o que leva o resto do filme/livro ralo abaixo.

    Percebo o esforço do autor em tentar tornar essas moças interessantes dotando-as de atributos onde a maioria dos homens que assistem esses filmes se interessariam (independência, espontaneidade, promiscuidade, certo nivel de cultura, e uma forte tendência ao foda-se), mas em vão, por algum motivo não consegue convencer e a personagem fica ridícula e só dá a vontade de mandá-la a merda o tempo inteiro.

    E por isso preciso me esforçar para chegar ao fim de uma obra que se desenvolve em torno de uma mulher que consegue ser no máximo muito irritante.

    02 julho, 2007

    Caminhada

    Estava cansado e resolvi dar uma caminhada para espairecer. Voltei, com um pé fodido em uma topada com um pedaço de concreto, mais magro, queimado, com a máquina cheia de fotos e a cabeça de idéias e lembranças.


    O texto "os donos dos nomes" que eu escrevi logo abaixo foi criado para participar de um concurso da revista piaui. Precisava criar um texto onde a frase "...e colocou um punhado de cânfora no tanque de sua Harley" e saiu isso.

    27 maio, 2007

    Os donos dos nomes

    E ali naquele bairro, por costume há muito esquecido, as coisas tomavam outros nomes. Nada mais comum, já que de casas eram chamados aqueles amontoados de madeira e plástico equilibrados por um milagre perene mantido pela ignorância dos moradores às mais básicas leis da física. Também eram chamadas de ruas aquelas estreitas e tortas vielas por onde escorria um eterno líquido malcheiroso que lá se atreviam a chamar de água.

    Por isso não me espantei quando o pó que sempre sustentara minha família novamente mudou de nome. Tanta dificuldade em aprender coisas novas na escola mas essas mudanças de ordem prática firmavam fácil na minha cachola. Cânfora, não sei quem inventa esses nomes, sei que se difundem mais rápido que pipoco de quinzão e, de um dia pro outro, todo mundo assim já chamava.

    Meu pai era um dos transportadores de papelotes de uma boca pra outra na medida da necessidade. Para tanto, era por ele recebida uma pequena quantia mensal e algumas ajudas, vez ou outra, como um caderno para que eu utilizasse na escola ou uma azeitonada na cabeça de alguma desavença de meu pai. Assim a vida vivia (outro apelido para algo que, no muito, era uma simples insistência em não sucumbir).

    Foi na promoção que meu pai teve no emprego que fui conhecer o bairro dos bacanas. Por serviço ligeiro, meu pai, conhecedor das bibocas e de todos os caminhos que picotam a comunidade, foi agraciado com a licença de levar o pó pra fora da favela. Isso queria dizer que a bufunfa ia crescer, era muito maior a responsabilidade e o prestígio.

    Peito estufado o pai me chama pra garupa da Harley, uma moto magrela de que ele muito se orgulhava. Enfiou o capacete na cabeça e escondeu o punhado de cânfora no tanque de sua Harley, saímos pipocando morro abaixo.

    A comunidade tinha ficado cabreira depois que o caveirão começou a rondar a favela. Haviam fritado um meganha intrometido no microondas e eles fecharam o cerco. Mas depois que molharam as mãos dos federa as coisas acalmaram, demos sorte e não encontramos nenhum no caminho.

    Feita a entrega voltamos quietos. O pai ficou de cabeça baixa por muito tempo. Acho que eu sabia o que ele estava pensando, era o mesmo motivo da minha mudez. A voz perde espaço quando os pensamentos enchem muito a cabeça. Percebemos uma coisa que não havíamos atinado. Neste perdimento de gírias e nomes que não eram nomes, nem nos demos conta de que "pessoa" era mais um. Um apelido para aquilo que éramos. Estávamos tão distantes daqueles seres que não podíamos ser chamados pelo mesmo nome. Nada do que tínhamos, criávamos ou víamos poderia se comparar com o que deles era. Agora entendemos o porquê de nunca chamarmos nada pelos nomes que deviam ter. Além de donos das coisas eram eles também os donos dos nomes.

    25 abril, 2007

    Machuca

    Se machucar cansa ou vira tumor.


    "I carry the sun in a golden cup.
    The moon in a silver bag."

    Yeats

    16 abril, 2007

    Incompetência

    Antigamente o único emprego para quem não tinha vocação nenhuma era entrar para a carreira militar (segundo Raul).

    Agora o leque de opções é maior, pode-se virar Dj.

    02 abril, 2007

    Roupa suja se lava em casa

    Acabei me acostumando com aquela figura quieta e introspectiva. O homem que passei a compartilhar da companhia e cama (para mim sempre foi difícil dizer a palavra "amar"). Sempre me apoiei naqueles ombros, mas sei que a recíproca nunca foi verdadeira. Pelo contrário, percebia uma ira incontrolável cada vez que oferecia minha ajuda e amparo, ele não queria nada de mim. Até hoje não entendo o porque dele ainda estar comigo. Não existe troca, não existe possibilidade de passar para o seu mundo.

    As vezes percebo seu olhar tão distante. Olho aquele semblante melancólico e sinto falta de alguma coisa. Falta algo naquele olhar. Percebo a inquietação e a dor. Falta algo!
    E eu sei o que é, aquele rosto orna com lágrimas. Várias delas aliás. Mas elas não vêm. Nunca vêm. Ele nunca chorou, não que eu tenha visto. Existe algo naquele passado que é intocável, é grande, pesado, triste, sangra e não transborda, acumula. Não consigo entender como não vaza.

    Sigo com ele pelo tempo. Compartilhamos pedaços de coisas, cacos de vida, nada inteiro. Palavras nunca ditas, idéias nunca expostas. E mesmo assim é grande, é imenso mesmo sendo metade. Nem quero pensar como deve ser inteiro. Provavelmente já deve ter acontecido, e foi maior do que até ele mesmo pudesse aguentar. Sei que algo nele ruiu para sempre, abalado pelo peso do que já foi.

    Chego em casa e ele já está. Isso é estranho, ele sempre demora tanto para voltar do serviço. Ele está sem camisa, olha para mim e abre um enorme sorriso. Eu gelo por dentro, quem é esse homem? Ele está lindo, está radiante. Vem em minha direção e me abraça como nunca fez antes, quase não consigo respirar tamanha a força. Ele afasta o seu rosto e me olha fixamente, apertando meus braços com força e diz:

    - Hoje eu chorei. Hoje eu chorei muito. Tudo agora será diferente.

    Ele caminha para a cozinha e volta com uma garrafa de vinho. Temos a noite mais maravilhosa desde que o conheci. Nem acredito nessa nova pessoa que meus olhos presenciam e meu corpo absorve. Fazemos amor a noite toda até que desmaio de exaustão.

    Sonho coisas boas, acordo feliz, me viro e fico observando seu sono tranqüilo. Vou ao banheiro e me olho no espelho. Vejo que nunca fui tão bonita quanto hoje de manhã.

    - Hoje sou a mulher mais bonita do mundo. Eu grito.

    De repente reparo em algo estranho na camisa branca que está no cesto de roupas sujas. Sangue! A camisa dele está manchada de sangue, sangue de outra pessoa. Volto a me olhar no espelho e vejo que estou ficando um pouco mais feia.

    Respiro fundo, jogo a camisa na máquina de lavar, encho de sabão, ligo e volto a me deitar sendo a mulher mais bonita do mundo.


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    Entre essas e outras que eu adoro essa cidade: Comida de Buteco 2007

    "I am a man of constant sorrow
    I've seen trouble all my day..."

    26 março, 2007

    Das tonalidades azuis que o amor pode ter

    O corpo azulado balouça melancólico no teto do quarto. Esquerda e direita na corda rangendo.
    - Um mórbido móbile. - Ria com a cócega das sílabas no céu da boca.

    Uma luz purulenta vaza a vidraça e, sangrada de sombra, projeta uma cruz funesta logo abaixo do coitado. Encostada no batente da porta, mão nas cadeiras e chiclé, meio na boca meio enrolado nos dedos, a mocinha assiste com admiração, visto que obra sua. Ela sabe que ele está melhor assim, era digno de pena, coadjuvante que não merecia a atenção de uma protagonista.

    Ela gosta de ver aquilo, apenas se incomoda com as moscas azuis e o cheiro forte que, ali, meio que sufoca, mas não é insuportável para convencê-la ir embora.

    Vendo o rosto, ela repara que está mais leve e sereno, provavelmente porque agora, definitivo por não ter mais jeito, sua mente está livre de mentiras e seduções que entretinham tanto a menina.

    Depois de trepar com os amigos e até com o irmão do menino pendulante, ainda no quente da cama e com o sexo ardendo, se divertia contando as baldas e segredos que o morto confidenciava cuidadosamente para ela.

    Ela ainda diz um "eu te amo" estridente antes de sair dando gargalhadas pela porta afora.

    21 março, 2007

    Coletivo

    Sentei no banco do ônibus quase nunca cheio que pego para o serviço.
    Me acomodo e começo a ler a merda do livro que eu só abro no ônibus e, como a viagem é curta, nunca termino. Mas o livro não é grande coisa não, aquela mistura de sexo e violência berradas aos palavrões que virou moda.
    -Você gosta de que tipo de música? Me berra uma infeliz que está imediatamente ao meu lado.
    Falo pra ela bem devagar e pausadamente: Você está berrando, não tem necessidade disso, eu ouço perfeitamente bem, pelo menos até antes desse grito.
    Então percebo que ela está com aqueles fones de ouvido. Aliás todos no ônibus estavam, fiquei um tempo com medo, imaginei uma conspiração de alienígenas, mas logo descartei a hipótese, seres de outro planeta seriam espertos demais pra ficar se comunicando com esses trambolhos presos nas orelhas.
    -Hein? me indaga a miliante.
    -Não adianta moça, não tem altura nenhuma que eu berre que vá competir com esse teu treco no seu ouvido.
    Mas não tinha jeito, ela fazia cara de quem não entendia até que teve a brilhante idéia de tirar um dos aparelhos de um dos ouvidos para escutar o que eu dizia.
    -Não gosto muito de nada. Respondi para ela.
    -Credo. Música é a minha vida. Quer saber do que eu gosto?
    -Na verdade não. respondi mas, imagino que devido à uma deficiência auricular proveniente do intenso uso do fone, ela não ouviu. Percebi que ela ia continuar a falar e fiquei repetindo mentalmente: "por favor não diga que é eclética, por favor não diga que é eclética, por favor não diga que é eclética".
    -Eu sou eclética
    Pronto. Só faltou emendar um "só não gosto de...".
    -Eu só não gosto de música antiga nem reggae.
    -Sério? Que interessante.
    -Comprei um celular que grava mp3. Tenho quase mil músicas aqui. Fico com ele o dia todo, não tiro nem pro trabalho.
    -Que bom pra você. Você sabia que teve um tempo atrás uma febre parecida? Era o walkman, só que tocava rádio ou fita k7.
    -Nunca ouvi falar. Estranho, e porque acabou? Eu vou ficar o resto da vida curtindo minha música o tempo todo no lugar que eu quiser.
    -Bacana. Ele acabou porque ninguém aguenta ficar escutando música o tempo todo. Além do mais, quando ficou comum demais, deixou de dar status, ninguém via muito sentido em ficar com aquele trambolho nas orelhas.
    -Mas isso aqui é muito prático, é pequenininho e grava muitas músicas, tenho a coleção completa da Ivete, do chiclete e uma boa seleção de funk. E além do mais me deixa a possibilidade de selecionar as músicas que eu quero e fazer uma lista. Tenho uma lista de 10 músicas que eu não paro de escutar.
    Fiquei pensando: De que adianta ter mil músicas se só se ouve dez? mas deixei quieto, lembrei que na fita dava pra gravar umas 20 músicas.
    -Antigamente era muito difícil achar uma música que a gente gostava. Tinha que buscar nos discos dos amigos ou ir em rádios, dar a listagem das música que queríamos e pedíamos pra gravar uma fita, pagando é claro.
    -Que saco.
    -Não sei. Era até bacana. Se curtia a música por mais tempo, agora é muito fácil, e você tem a possibilidade de ouví-la o tempo todo, não lembro quem disse que "até a mais genial das idéias se torna tola quando repetida inúmeras vezes". Havia uma certa ideologia em se ir atrás de músicas impossíveis. Sedutor como toda ideologia, justamente por ser insípeda, inodora e incolor, inalcançável e, por isso, segura.
    -Hehehehe.
    Ela dá uma risada idiota.
    -Esquece.
    -To escutando uma música que a Ivete tocou ontem no Faustão, você viu?
    -Não assisto muita TV
    -Você é daquele tipo intelectualóide? Aquele que usa óculos de aros grossos e pede pizza de mussarela de búfala com rúcula?
    -Não uso óculos. Até gosto dessa pizza, mas prefiro uma com mais ingredientes.
    -Vocês tem um monte de argumentos contra a Tv não é mesmo?
    -Só tem uma coisa que eu detesto mais do que TV, são os discursos contra ela. Eu só não gosto de TV e pronto. Sei lá. Devia fazer um aquário com a minha.
    -Ia ser interessante de assistir.
    -Barbaridade! Valeu pelo papo mas tenho que descer, meu ponto é esse.
    -Tudo bem. Quem sabe amanhã a gente se encontra de novo no ônibus?
    Não concordei nem discordei, apenas desci em um ponto antes do que devia e sei qual ônibus eu não vou pegar amanhã cedo.
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    Tem uma vantagem nesse treco de colocar nas orelhas, poderia ficar falando sozinho que todo mundo ia achar que estava ao celular.

    07 março, 2007

    Um faroleiro, agulha e tinta

    A machesa que nele encontras vem dos pelos. É de lá que cavas a hombridade que usas para desculpar a sedução que te causas. É a barba que te puxas para aquela nuca. São os pelos do peito que conduzem tua boca a deslizar por aquele ventre.

    Esse estrangeiro, salgado de mar, que escolheste para deitar e que não te merece. E eu sei disso porque não existe a possibilidade de alguém a merecer sendo que eu te amo dessa forma desesperadora. Depois disso todos os outros amores, abafados em suas insignificâncias, não encontraram mais espaço para existir.

    Então observo do meu farol o navio de teu amante. Tão distante das minhas vistas mas tão perto do meu padecimento. O lento subir e descer dessa embarcação confunde meus desejos. Sei que lá estás e, mesmo assim, algumas horas desejo que submerjam nas entranhas traiçoeiras do mar para, quem sabe, ocorrer o mesmo com minhas lembranças.

    Fico aqui, nessa janela, a mais alta que já existiu. Minhas únicas companhias, além da luz rodopiante que me concede trevas e claridade nas doses necessárias para a minha arte, são uma agulha enferrujada e um vidro de tinta.

    Eu, inberbe, agora tatuo meu corpo e, cada vez que pinto minha pele escura e seca, mancho mais a minha alma. Um traço azul para cada pedaço do outro que nunca serei. E para isso espeto minha derme, insiro em meu corpo essa tinta infecta na violência de uma agulha suja. Faço símbolos que, só a mim, contam toda essa história.

    Os rabiscos vão tomando rumos intermináveis, virando frases indecifráveis. As vezes, perdido, me encho de mentiras, outras vezes, perdido, de verdades inacreditáveis. De forma que jamais conseguirei desvencilhar uma da outra.

    Faço isso com uma calma absoluta, sem dor, não sinto mais. Afasto as células com a ponta invasiva e meus nervos assistem à tudo impassíveis.

    Minha pele acaba, meu corpo apodrece. Mas os pelos? Eles não. Sempre hão de nascer de novo.

    "La donna è mobile
    Qual piuma al vento,

    Muta d'accento — e di pensiero.
    Sempre un amabile,
    Leggiadro viso,
    In pianto o in riso, — è menzognero.


    È sempre misero
    Chi a lei s'affida,
    Chi le confida — mal cauto il core!
    Pur mai non sentesi
    Felice appieno
    Chi su quel seno — non liba amore! "

    16 fevereiro, 2007

    Eternamente teu

    E naquele farfalhar confuso que meu coração fazia, me embrulhando o peito e embotando minhas vistas para todo o resto que não fosse feito dela, percebi o quão longe de mim eu estava. Eu não queria mais ser eu, queria ser algo diferente. Queria ser algo com ela. Precisava de algo que proviesse dela, um desprezo que fosse. Mas tinha que ser algo que se tornasse unicamente meu.

    E por isso senhores, aqui estou. Naquele momento percebi que apenas alcançaria a indiferença daquele anjo que me deu a graça de, pelo menos por um instante, o contemplar. E por toda minha existência nessa terra maldita, dessa vida e todas as outras que por acaso existirem, me lembrarei daqueles pequenos segundos em que aqueles olhos cruzaram com os meus.

    Desculpe o embargar de voz senhores. Teria alguém um lenço? Obrigado.
    Cada vez que eu me lembro daqueles olhos azuis imaculados olhando para os meus, que são cheios de pecado e veneno, me dá vontade de chorar. Seu lenço senhora. Novamente muito obrigado.

    Mas não pensem que eu fui profano de todo. Não senhores. Não mantive meu olhar. Fixei-os apenas o tempo suficiente para mirar, depois desci-os ao chão e pressionei o gatilho. E, como sabem, não errei. Não senhores, sou bom demais nisso.

    Enfim senhores, carrego comigo algo dela que ninguém mais poderá carregar. Nisso ela é só minha e assim será eternamente. E nenhuma sentença que vocês me derem, Juiz Maldito e miseráveis ignorantes (pois jamais fitaram aquele par de olhos) membros do juri, irá diminuir a graça que recebi de ter sido por ela percebido e assim tomando parte importante em sua vida, mesmo que sendo por sua morte.

    Guimarães

    "O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
    Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura...E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
    - Meu amor!...
    Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.
    "

    15 fevereiro, 2007

    Sonhos

    "Lembrei do seu aniversário no dia seguinte de tarde, quando achei você bonito de chapéu. Daí de noite estávamos bebendo num apartamento que tinha uma bancada como aquela das fotos do taco, paredes brancas, piso de madeira, um sofá pequeno com uma capa, uma rede e poucos móveis além desses. Meu cabelo estava mais comprido, e você usava jeans e uma camisa branca, com botões meio abertos, mangas dobradas até o meio dos braços, descalço, como eu. Conversávamos e você me fazia rir. Conversávamos e o teu olho brilhava, enquanto você me contava coisas sobre o teu filho. Conversávamos e você me agradeceu pelo presente, e me contou do porre."

    Tem alguns lugares em que eu me sinto tão bem. Os sonhos da Ju é um deles.