26 março, 2007

Das tonalidades azuis que o amor pode ter

O corpo azulado balouça melancólico no teto do quarto. Esquerda e direita na corda rangendo.
- Um mórbido móbile. - Ria com a cócega das sílabas no céu da boca.

Uma luz purulenta vaza a vidraça e, sangrada de sombra, projeta uma cruz funesta logo abaixo do coitado. Encostada no batente da porta, mão nas cadeiras e chiclé, meio na boca meio enrolado nos dedos, a mocinha assiste com admiração, visto que obra sua. Ela sabe que ele está melhor assim, era digno de pena, coadjuvante que não merecia a atenção de uma protagonista.

Ela gosta de ver aquilo, apenas se incomoda com as moscas azuis e o cheiro forte que, ali, meio que sufoca, mas não é insuportável para convencê-la ir embora.

Vendo o rosto, ela repara que está mais leve e sereno, provavelmente porque agora, definitivo por não ter mais jeito, sua mente está livre de mentiras e seduções que entretinham tanto a menina.

Depois de trepar com os amigos e até com o irmão do menino pendulante, ainda no quente da cama e com o sexo ardendo, se divertia contando as baldas e segredos que o morto confidenciava cuidadosamente para ela.

Ela ainda diz um "eu te amo" estridente antes de sair dando gargalhadas pela porta afora.

21 março, 2007

Coletivo

Sentei no banco do ônibus quase nunca cheio que pego para o serviço.
Me acomodo e começo a ler a merda do livro que eu só abro no ônibus e, como a viagem é curta, nunca termino. Mas o livro não é grande coisa não, aquela mistura de sexo e violência berradas aos palavrões que virou moda.
-Você gosta de que tipo de música? Me berra uma infeliz que está imediatamente ao meu lado.
Falo pra ela bem devagar e pausadamente: Você está berrando, não tem necessidade disso, eu ouço perfeitamente bem, pelo menos até antes desse grito.
Então percebo que ela está com aqueles fones de ouvido. Aliás todos no ônibus estavam, fiquei um tempo com medo, imaginei uma conspiração de alienígenas, mas logo descartei a hipótese, seres de outro planeta seriam espertos demais pra ficar se comunicando com esses trambolhos presos nas orelhas.
-Hein? me indaga a miliante.
-Não adianta moça, não tem altura nenhuma que eu berre que vá competir com esse teu treco no seu ouvido.
Mas não tinha jeito, ela fazia cara de quem não entendia até que teve a brilhante idéia de tirar um dos aparelhos de um dos ouvidos para escutar o que eu dizia.
-Não gosto muito de nada. Respondi para ela.
-Credo. Música é a minha vida. Quer saber do que eu gosto?
-Na verdade não. respondi mas, imagino que devido à uma deficiência auricular proveniente do intenso uso do fone, ela não ouviu. Percebi que ela ia continuar a falar e fiquei repetindo mentalmente: "por favor não diga que é eclética, por favor não diga que é eclética, por favor não diga que é eclética".
-Eu sou eclética
Pronto. Só faltou emendar um "só não gosto de...".
-Eu só não gosto de música antiga nem reggae.
-Sério? Que interessante.
-Comprei um celular que grava mp3. Tenho quase mil músicas aqui. Fico com ele o dia todo, não tiro nem pro trabalho.
-Que bom pra você. Você sabia que teve um tempo atrás uma febre parecida? Era o walkman, só que tocava rádio ou fita k7.
-Nunca ouvi falar. Estranho, e porque acabou? Eu vou ficar o resto da vida curtindo minha música o tempo todo no lugar que eu quiser.
-Bacana. Ele acabou porque ninguém aguenta ficar escutando música o tempo todo. Além do mais, quando ficou comum demais, deixou de dar status, ninguém via muito sentido em ficar com aquele trambolho nas orelhas.
-Mas isso aqui é muito prático, é pequenininho e grava muitas músicas, tenho a coleção completa da Ivete, do chiclete e uma boa seleção de funk. E além do mais me deixa a possibilidade de selecionar as músicas que eu quero e fazer uma lista. Tenho uma lista de 10 músicas que eu não paro de escutar.
Fiquei pensando: De que adianta ter mil músicas se só se ouve dez? mas deixei quieto, lembrei que na fita dava pra gravar umas 20 músicas.
-Antigamente era muito difícil achar uma música que a gente gostava. Tinha que buscar nos discos dos amigos ou ir em rádios, dar a listagem das música que queríamos e pedíamos pra gravar uma fita, pagando é claro.
-Que saco.
-Não sei. Era até bacana. Se curtia a música por mais tempo, agora é muito fácil, e você tem a possibilidade de ouví-la o tempo todo, não lembro quem disse que "até a mais genial das idéias se torna tola quando repetida inúmeras vezes". Havia uma certa ideologia em se ir atrás de músicas impossíveis. Sedutor como toda ideologia, justamente por ser insípeda, inodora e incolor, inalcançável e, por isso, segura.
-Hehehehe.
Ela dá uma risada idiota.
-Esquece.
-To escutando uma música que a Ivete tocou ontem no Faustão, você viu?
-Não assisto muita TV
-Você é daquele tipo intelectualóide? Aquele que usa óculos de aros grossos e pede pizza de mussarela de búfala com rúcula?
-Não uso óculos. Até gosto dessa pizza, mas prefiro uma com mais ingredientes.
-Vocês tem um monte de argumentos contra a Tv não é mesmo?
-Só tem uma coisa que eu detesto mais do que TV, são os discursos contra ela. Eu só não gosto de TV e pronto. Sei lá. Devia fazer um aquário com a minha.
-Ia ser interessante de assistir.
-Barbaridade! Valeu pelo papo mas tenho que descer, meu ponto é esse.
-Tudo bem. Quem sabe amanhã a gente se encontra de novo no ônibus?
Não concordei nem discordei, apenas desci em um ponto antes do que devia e sei qual ônibus eu não vou pegar amanhã cedo.
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Tem uma vantagem nesse treco de colocar nas orelhas, poderia ficar falando sozinho que todo mundo ia achar que estava ao celular.

07 março, 2007

Um faroleiro, agulha e tinta

A machesa que nele encontras vem dos pelos. É de lá que cavas a hombridade que usas para desculpar a sedução que te causas. É a barba que te puxas para aquela nuca. São os pelos do peito que conduzem tua boca a deslizar por aquele ventre.

Esse estrangeiro, salgado de mar, que escolheste para deitar e que não te merece. E eu sei disso porque não existe a possibilidade de alguém a merecer sendo que eu te amo dessa forma desesperadora. Depois disso todos os outros amores, abafados em suas insignificâncias, não encontraram mais espaço para existir.

Então observo do meu farol o navio de teu amante. Tão distante das minhas vistas mas tão perto do meu padecimento. O lento subir e descer dessa embarcação confunde meus desejos. Sei que lá estás e, mesmo assim, algumas horas desejo que submerjam nas entranhas traiçoeiras do mar para, quem sabe, ocorrer o mesmo com minhas lembranças.

Fico aqui, nessa janela, a mais alta que já existiu. Minhas únicas companhias, além da luz rodopiante que me concede trevas e claridade nas doses necessárias para a minha arte, são uma agulha enferrujada e um vidro de tinta.

Eu, inberbe, agora tatuo meu corpo e, cada vez que pinto minha pele escura e seca, mancho mais a minha alma. Um traço azul para cada pedaço do outro que nunca serei. E para isso espeto minha derme, insiro em meu corpo essa tinta infecta na violência de uma agulha suja. Faço símbolos que, só a mim, contam toda essa história.

Os rabiscos vão tomando rumos intermináveis, virando frases indecifráveis. As vezes, perdido, me encho de mentiras, outras vezes, perdido, de verdades inacreditáveis. De forma que jamais conseguirei desvencilhar uma da outra.

Faço isso com uma calma absoluta, sem dor, não sinto mais. Afasto as células com a ponta invasiva e meus nervos assistem à tudo impassíveis.

Minha pele acaba, meu corpo apodrece. Mas os pelos? Eles não. Sempre hão de nascer de novo.

"La donna è mobile
Qual piuma al vento,

Muta d'accento — e di pensiero.
Sempre un amabile,
Leggiadro viso,
In pianto o in riso, — è menzognero.


È sempre misero
Chi a lei s'affida,
Chi le confida — mal cauto il core!
Pur mai non sentesi
Felice appieno
Chi su quel seno — non liba amore! "