10 março, 2006

He's got the whole world in His hands

Contemplo as mãos.
Alvas, sem calos ou pelos, dedos longos. Mãos de pianista minha mãe falava.
Mãos que já deram prazer e ofenderam. Mãos que já acariciaram seios e clítoris, secaram lágrimas e fizeram chorar.
Mãos que já fizeram gestos obscenos e se chocaram violentamente contra rostos, criaram coisas do nada e destruiram.

Mas, apesar de tudo, elas sempre foram desprovidas do poder que agora têm.
Na verdade nunca almejaram o poder.
Por isso quando as contemplo seguindo braços acima, percebo que ainda estão ligadas ao meu corpo mas não consigo sentí­-las como parte de mim.

Sinto como se elas fossem enxertadas, fizessem parte de alguém que decide, que participa. De alguém "intenso".

Observo esse outro me observando, me criticando. Percebo que ele me julga e condena. Para ele não existe meio termo, para ele existe uma verdade absoluta, uma sentença.

Rio assustado sem tirar os olhos das mãos. Percebo as unhas roídas, as dobras, as pintas e todas as características mí­nimas que as tornam únicas. Viro e observo de outros ângulos, afasto e aproximo do meu rosto. Veias, carne, peles e unhas. Um mecanismo complexo e bonito.

Uma está aberta e a outra fechada.

O poder vem de uma extensão da mão fechada. Do extremo. Onde acaba a carne e se torna metal. O metal acaba e se torna pólvora. Onde a pólvora acaba e se torna solução.
Sinto o frio pressionando minha têmpora. Fecho os olhos porque não há mais nada para ver.

Ainda ouço o estampido começar e, imediatamente, cessar.

Nunca toquei piano.

4 comentários:

Anônimo disse...

Seu texto vai envolvendo o leitor em um crescendo de suspense e angústia, muito bom. Já está com o computador em casa? Não abandone o seu instrumento criativo para nos presentear com mais visões agudas do ser humano como esta aí. Bem, aproveito a visita para avisar que estou publicando no mosaicos as melhores manchetes de uma coluna cultural que mantive em 2002, o Sombra Boa. Abraços.

Luiz Roberto Lins Almeida disse...

Ca-ra-co-les!!!
muito bom mesmo. Concordo com o Maciel.
"Cartas" de suicida às vezes caem no lugar comum. seu jeito de contar é que muda tdo.

Anônimo disse...

Que maestria para conduzir um suspense! Gosto do que se diz sem dizer, do que se sugere nas entrelinhas.
Vc é um excelente contista!
Beijocas

Luiz Roberto Lins Almeida disse...

"nunca toquei piano"