05 setembro, 2006

Conto de Morena Noite

Texto antigo.



É sexta-feira e os lobos uivam nesta noite, clamando pelas possibilidades não tentadas.
A pálida lua faz-se alta, ensandecendo mentes solitárias e inspirando pensamentos inimagináveis na rotina do dia.
Está na hora! Inicia-se a frenética busca da recompensa esperada de emoções devidas pelos dias de labuta.
Absorto em vagos pensamentos, aqui me encontro, novamente protegido pela anonimidade que somente as trevas nos concedem. Imerso neste mundo que já me é familiar rumo instintivamente ao meu destino.

No carro, cujo rádio faz-se ausente, meus lábios cantarolam inconscientes, embalados pelo metódico pulsar da noite Campo Grandense. O azedo cheiro de vinho recentemente derramado sobre o estofado esvai-se. Luzes cortam a espessa atmosfera plúmbea da garoa formando riscos luminosos que sangram momentaneamente a pele da negra noite. O resto de mim cala-se. Cala-se cerimoniosamente em respeito às inúmeras portas já ultrapassadas e às que ainda encontram-se cerradas à espera de sussurros que as libertem de seus pesados ferrolhos.

Quais possibilidades surgirão e quais se extinguirão? Que odores, sons, gestos, gostos ou texturas testarão os sentidos de seu inconseqüente narrador?

O amarelo piscar do marcador do tanque de combustível insiste em lembrar-me do iminente fim de mês e, conseqüentemente, da minha lastimável situação financeira.
Dou meu último trago no cigarro enquanto estaciono em frente à porta semi-iluminada. Desprovido da vermelha reluzente armadura de metal aspiro o inebriante, suave e conhecido odor exalado pelos serenos ocupantes da calçada em frente ao estabelecimento no momento em que seduzem suas fêmeas Marias.

Não me protejo da chuva, não é necessário. Pelo contrário, o gelado afagar de seu pranto escorrendo pela pele deixa-me extremamente relaxado.
Nenhuma placa a identificar o lugar. É assim que deve ser...
Subo a íngreme escada que dá acesso ao interior do recinto. Ao meio vê-se a mesinha marrom já surrada pelo tempo usada como caixa para o pagamento das entradas. Soltas, duas moedas rolam tilintando e correm fugazmente sumindo, em seguida, dentro da gaveta. O anfitrião estuda uma grave, porêm inofensiva feição e permite minha entrada.

- Hoje, no cardápio, digeriremos blues. Informa-me.

Sei! Penso comigo. Por isso, apesar de ter que madrugar para trampar, aqui me encontro.
Mas, doce ilusão, não me convenço, sei que é outro o meu motivo e continuo seguindo os estreitos degraus onde lê-se avisos sobre os perigos da escada aos embriagados transeuntes.

A visão que se tem em seguida aproxima-se de um sonho. Visões distorcidas pela fumaça dos cigarros onde feixes de tênue luz insistem em violentar a fugaz neblina. Suaves e adocicados perfumes femininos misturados ao acre odor do tabaco compoem o aroma que conta com uma trilha sonora mesclada de distorcidos instrumentos musicais, gargalhadas, o trânsito logo ao lado, agudas colisões de bolas de bilhar e espasmos vocais dos mais variados timbres, tudo misturado em uma imaginária competição de superação em altura, só controlada e parcialmente amenizada com a entrada da melancólica voz do vocalista da banda composta por habilidosos bêbados.

Cheguei em casa!

Aproximo-me do balcão reconhecendo, ao longo do torto percurso, amigos e um antigo rosto cuja contígua história retêm chagas ainda não cicatrizadas.

- Uma cerveja! Peço ao meu prestativo rival, tentando assim, consolar-me da decepção. Ela não está!

Munido de um cigarro em uma mão e uma garrafa na outra me dirijo a um escuro canto do bar. Sento-me em uma fria cadeira de metal já que o único banco de balcão existente encontra-se ocupado. Sorvo grandes goles direto do gargalo, assim me sou mais fiel.
Encontro-me finalizando agora mais um fino dragão e percebo que a deusa por mim buscada no fundo do recipiente de vidro âmbar já me embala. Enquanto isso o vocalista entoa seus lamuriosos versos que contam a história de alguém que festeja sua solidão.

Do meu canto aprecio as pessoas nas suas discretas tentativas de auto-afirmação enquanto tento me concentrar nas minhas próprias.
Mulheres já tombadas em meu leito desviam os olhares assustadas esperando não serem reconhecidas, e não desrespeitarem assim os seus atuais proprietários. É impressionante como esse tipo de atitude, apesar de ser de uma enorme trivialidade, ainda me espanta.

- Mais uma! Ao eficiente rival de novo me dirijo. Ele sacode a cabeça alinhando os atributos que os levaram a adquirir seu pseudônimo e me atende.

Num instante, faz-se silêncio. Percebo uma crescente tensão no ar. Algo acontecerá. Acordes reverbam Suspicious Mind. Presságio? O ar pesado se dilui e começo a vislumbrar sua forma. Inicialmente apenas a silhueta, cercada por entes que disputam sua atenção. Então a imagem fica nítida e me deleito com a visão de um sorriso, que, se pudesse ser definido, situá-lo-ia na fronteira entre o sacana e o ingênuo. Afasto-me, retendo-me na minha insignificância entrincheirada em meu orgulho. Ao longe, contento-me ao exercício de platônicamente admirar minha musa. Ainda não...

Segura em seu pedestal de mistério e inacessibilidade dança sorrindo por trás do balcão, sua indiferença provoca-me ainda mais.
Desvio o olhar para o show, indagando se minha presença por ela é notada. Meu ligeiro rival não pára, porém não se ausenta por muito tempo.
Viro-me novamente e, imaginem caros amigos, encontra-se ela ao meu lado. Sorrindo enrubescido teço imbecis comentários a respeito da música que toca ao fundo. Encantado, contemplo o brilho do seu rosto e o suave e hipnótico arfar de seus fartos seios ao comentar sobre minha, já constante, visita (bom sinal! Não passei despercebido).

Discutimos amenidades, tento impressioná-la contando bravos feitos como se fosse uma animal expondo suas qualidades para convencer a parceira a escolhê-lo, porém, não posso fazer-me óbvio, meu atento rival encontra-se à espreita. Inseguro finjo indiferença, mas o diálogo é interrompido... sutilmente meu sagaz rival fez-se presente.

Afasto-me calmamente em direção à saída com um sorriso que insiste em estampar-me a face.
Palavras invadem minha mente em tão grande quantidade que me atormentam, queria eu ter competência para, em lógico sentido, poder ordená-las.

Agora parto à minha humilde e solitária moradia atropelando esporádicos reflexos.
Talvez ela nem tenha percebido, mas enquanto se enlaça em meu afortunado rival, um pedaço do seu pensamento já me pertence, e basta para que, em propícias ocasiões, continue a ser cultivado.

Sedução, meus caros amigos, é um doce vício do qual ninguém quer se curar.

E o fim desta história? Indagam-me os curiosos leitores cuja honra foi-me dada por terem conseguido até aqui chegar. - Também anseio por sabê-lo - Respondo-lhes. Infelizmente, tal desfecho não me foi revelado, pois nas entranhas do destino encontra-se ainda trancafiado, esperando, talvez, a próxima noite de Sexta para acontecer. Quem sabe?


Apenas sutil
Mais noites virão
Não foi por agora,
Mas outras serão




Morre a noite,
A garoa acaba...
Os sons já são outros,
Retorno para casa.




Dormem lobos, acordam ovelhas.

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