04 abril, 2013

O espaço entre a pedra e o chão


Só a beira, era o tanto de olho que eu deixava pro lado da pedra. Medrei depois que Jão disse que podia ser visto de longe caso meu metal se alumiasse. Não mais esticava o pescoço, que melhor me deixava ver. Mesmo com o ponto distante, de forma que não identificava nem braço nem perna nem cabeça, eu me protegia. Talvez meu chapéu apontasse na parte de cima da pedra mas, como eram tudo da mesma cor de sujeira, imagino que não daria alarme. Além do mais não ia deixar minha cabeça queimando de sol, tava muito forte de quente. Voltei a me escorar com as costas na pedra fervente, não tinha sombra no sol do meio dia, meu suor escorria e colava a pele na roupa. Meu chapéu acabou ficando um pouco levantado nessa posição, espremido entra a pedra e a nuca. Lembro do gosto salgado do suor pra dentro da boca, tinha água mas não sede apesar de estar queimando por dentro. Enquanto o ponto ainda era ponto lembrei da minha terra não muito distante, nuca fui pra muito longe, nem o que era de longe se aproximou muito de mim. Sou daqui, não da pedra, mas de perto. O distante e diferente me mareavam, mesmo sem mar. Agora cá me penso, já estou sem mijar há mais de um dia, cagar nem pensar. Isso não seria problema, faço no canto da pedra e me limpo jogando areia no cu, como sempre. Mas não faço essas coisas. Não faço por agora, tenho que resolver o caso do ponto, que ainda é ponto pois não teve tempo de se transformar em outra coisa, não ainda. Pelo menos eu acho. Quando penso muito me encho de dúvidas, e isso me desespera. Quando foi que eu dei a última espiada? Agora? Faz tempo? não lembro mais. Volto a meter o olho pelo lado da pedra. Não, é ainda um ponto. Não está muito diferente da outra vez, é no que percebo que não tinha espiado faz muito. Ou não, o ponto pode estar parado, querendo ser sempre ponto pra não ser outra coisa. Será que ele sabe que se ele for outra coisa eu dou um jeito nele? Será que ele atinou no vulto do meu chapéu? Será que de ponto, com regresso resolvido, sumirá? Isso não poderia ser, por ser muito terrível. Já foi fechado o assunto com meu patrão de agora, nunca descumpri o que selei com palavra. Minha língua sempre foi bem usada, não muito, mas quando sim, era verdade. Lembrei agora que estou sem comer também, talvez por isso não me tenha ido aos pés. Mas isso é bom, só que agora com o lembramento, a fome me veio. Mascava uma casca de árvore, a terceira já, mas o estômago pedia carne. Lembrei do naco que deixei no alforje, embora já devesse estar podre. Masquei um pouco, estava dura e soltava uma espécie de areia, mas o gosto não era tão ruim e quando a saliva entrava na carne, voltava como um caldo saboroso, embora forte, entre meus dentes faltantes. Dei um gole de cana, agua ainda não me faz falta. Respiro um pouco e olho pro vazio do céu. Será que ele sumiu, ou vem mais pra perto do destino que, nesse caso, se transveste de mim? Não gosto de pensar, tanto que vou a igreja. Lá o pastor me ensina no berro “tudo que há de ser, será”. Se espio, meu chapéu aponta, mas se não, me perco o negócio. Espio ou não? No resolvimento, espio. O ponto já criou braços, vem a ter comigo. Fico tranquilo e não mais me esgueiro na pedra escaldante, fico firme e quieto. Manejo meu ferro devagar, é quente no sol do meio dia, machuca a mão. Há de ficar pior, o sol não se compara a pólvora que vou queimar. Me vem de novo o medo do brilho do metal, Jão filho da puta. Não gosto de pensar. Faço mira e suo, sei os dois muito bem, por isso aqui me tenho. Ele não deve ter escutado o barulho, nem eu escuto o dele, foi um desabar silencioso, pelo menos na distancia. Pronto, já não tem mais ponto, já não tem mais perna, já não tem mais braço, agora é só chão.

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