28 novembro, 2006

Já volto...

Ainda com os lábios colados na boca de nando ela perscruta a boate inteira com aqueles olhos apertados que fazem marmanjos chorar. Nesse rápido movimento ela consegue filtrar a maioria das pessoas que a interessam. Alguns a atraem pela beleza, outros pelo jeito de se moverem e outros ela nem sabe por que. Todos fazem parte da mesma massa humana que ela precisa seduzir, que precisa sugar. Ninguém tem nada em particular que a interesse, todos são apenas reflexos de sua própria pessoa, seu alimento gordo de todas as noites.

Ela ficava intrigada em como a aparência de independência, que a promiscuidade assumida concede, é capaz de seduzir tão intensamente e tão prontamente todo o tipo de pessoa. A promiscuidade era um ponto de honra para ela, uma questão resolvida. Sempre tinha se indignado com aquela postura ridícula, desnecessária e hipócrita que, para ela, vinha direto do cristianismo, a insuportável monogamia.

Ela sentia que assumia sua humanidade na promiscuidade, sabia que todos eram assim, não via sentido em negar tal impulso. O defeito em tudo e todos é simplesmente a mentira. As pessoas não traem porque trepam com outras, mas sim porque prometeram que nunca iriam fazê-lo.

Depois de todas as revoluções que sua língua fez na boca de nando ela afasta o rosto e o olha fixamente. Dá um sorriso e se afasta com um "já volto" em direção ao bar. Ele ainda tenta pensar que ela irá apenas buscar outra bebida, mas os dois sabem que ela não irá voltar.

15 novembro, 2006

"Então, pela primeira vez, Maca sorriu para mim, e juro que conheci o que provocou, caralho, a queda dos anjos. O que provocaria, maldita a hora que nasci, o desespero que está me queimando. Soube aquela noite que, depois de ter dormido com centenas de mulheres, eu era virgem. Conheci, maldita hora em que meus pais se misturaram, conheci que o céu e o inferno têm a mesma porta morna, e que se pode viver dentro de um relâmpago."

14 novembro, 2006

líquido fecundante produzido pelos órgãos genitais dos animais machos

E o que será que passa na porra dessa tua cabeça?
E o que será que se passa na porra do teu coração?
E o que percorre a porra do teu corpo?
E de que porra estás falando?
Talvez a resposta seja simples,
provavelmente é só isso,
simplesmente

porra.

09 novembro, 2006

Argumento único

"...e cada qual no seu canto,
em cada canto uma dor..."




Há tempos Getúlio não sabia o que era uma boa noite de sono. Médico respeitado, era considerado calmo, afável e competente por seus colegas e pacientes. Apesar das inegáveis qualidades, cultivava poucas amizades pois o contato que mantinha com outras pessoas era travado dentro do hospital e era inteiramente profissional, ninguém conhecia o Getúlio que existia além daquelas portas.


Sua esposa, Tereza, não trabalhava, ficava o dia inteiro em casa imaginando o que o marido estaria fazendo. E sua mente viajava. Em seus delírios, Tereza via Getúlio em bacanais dionisíacos dentro da sala de cirurgia, imaginava traições espetaculares com conivência de seus amigos. Via tudo e todos relacionados com seu marido, armando um cinematográfico complô contra ela.

Depois de extensos e cansativos plantões, Getúlio chegava em casa. Nesta hora que o suplício começava. Ele sempre mantinha uma ponta de esperança de que Tereza poderia estar dormindo ou ocupada com alguma outra coisa para que ele passasse despercebido. Mas isso nunca acontecia. Tereza transformava cada segundo de atraso em uma eternidade de reclamações despejadas no ouvido de Getúlio.

Getúlio, mesmo precisando acordar cedo pra trabalhar no outro dia, sabia que o melhor a fazer era não contrariá-la e ficar ouvindo, pois, para Tereza, o fato dele não gostar de ouvir as suas reclamações era a prova de seu desamor e descaso com o relacionamento que estava tentando salvar. Tereza falava e Getúlio se esforçava para entrar em um tipo de transe, um entorpecimento. Ele nunca entendia o que ela falava, tão depressa era a enxurrada de reclamações. Ela começava perguntando sobre o atraso e seguia escarrando seus delírios. Quando acabavam os argumentos, ela prosseguia repetindo os discursos feitos na noite anterior e assim sequencialmente. A voz de Tereza ia sumindo conforme Getúlio se concentrava em algo. Seu sistema era o seguinte: começava a observá-la atenciosamente em busca de alguma coisa que chamasse a atenção, podia ser um botão da blusa que, conforme a posição, produzia bonitos e fugazes reflexos, ou os brincos que giravam caóticos sob suas orelhas. Certa noite, Tereza notou seu olhar vago atravessando-a e achou que Getúlio estava focando a televisão que estava logo atrás dela..

- Tá interessado na televisão? Então vai lá. Vai assistir ao filme que tanto te interessa.

Getúlio realmente acreditou que Tereza estava falando sério, sorriu e começou a assistir ao filme. Infelizmente só deu tempo de pegar o intervalo. Logo Tereza, que o fitava com os olhos apertados de raiva e o pé a bater no chão, pulou ferozmente em frente à televisão e começou, novamente, a esbravejar:

- Viu como eu tenho razão em reclamar de você? Você não me dá atenção. Me sacaneia o dia inteiro e quando eu, que quero salvar nosso casamento, quero discutir a nossa relação você ignora.

Então Tereza continuava suas lamentações de onde tinha parado.

E assim corriam os dias e noites de Getúlio.

Numa bela noite, Getúlio estava procurando algum objeto para distrair sua atenção enquanto Tereza falava. Um reflexo prateado lhe chama atenção. Era a lâmina de seu bisturi que estava na mesa ao alcance de seu braço. O reflexo brilhava diferente, estava mais bonito porque além da lâmpada, Getúlio via refletida a possibilidade de uma liberdade e paz antes inimaginável. Para não atrapalhar o discurso de Tereza, seu golpe foi único e silencioso. A lâmina afiada separa a carne, pele e veias da garganta de Tereza. Ele, calmamente, volta a sentar e percebe que Tereza continua a reclamar. Agora reclama de falta de ar, que não quer morrer, mas Getúlio continua a não entendê-la direito. Ele se lembra que precisa achar alguma coisa para desviar sua atenção, olha em volta e, de repente, abre um largo e franco sorriso. Ele nunca tinha achado algo tão interessante quanto as lindas bolhas de sangue que voam da espuma que sai do pescoço de Tereza toda vez que ela tenta gritar.