10 janeiro, 2006

O filho do puto

O filho da puta não morre, está deitando naquela fétida cama de hospital resmungando frases sem sentido nos seus devaneios constantes causados pela febre.
Ninguém liga para o idiota, sua única companhia na hora da verdade sou eu, seu filho. E não. Não estou aqui por compaixão ou para demonstrar algum sentimento bom. Aqui estou para regojizar este momento de liberdade. Esta liberdade do peso que insiste em rodear minha vida. Maldita consciência que insiste em me atormentar.
Considero este meu comportamento completamente normal. Vejo meu asco com ele uma consequencia instintiva. Comparo aos comportamentos dos bandos selvagens onde os machos jovens acabam sentindo uma aversão inconsciente por seus pais e se vêem na obrigação de abandonar o grupo.
Ele tosse e acorda. Fica feliz por eu estar ao seu lado. Retorno um riso forçado.
-Tinha tanta coisa pra fazer.
-É. Realmente não dá tempo.
-Nunca dá. Mas também vivi bem. Não realizei um décimo dos meus sonhos, mas os que realizei compensaram.
-Pena que nunca repartiu isso comigo.
-Você fala como se estivesse, em alguma momento, disposto a ouvir.
-É, talvez tem razão. Mas você poderia escrever sobre o que ainda gostaria de fazer e sobre o que já fez...
-Não. Não tenho mais tempo. A iminência do meu fim me obrigaria a escrever alguma coisa importante. Não tenho a competência, sou banal. Teria que conseguir descrever uma vida, e isso, com certeza, não cabe nas palavras. Além do mais, prefiro acabar deixando a expectativa de que conseguiria deixar um legado genial do que frustrar a todos com textos medíocres.
-Resumindo: é melhor não tentar do que tentar e fracassar.
-No fim da vida não temos tempo pra fracassarmos, ou o somos ou não. No meu caso fica o óbvio.
-E o que achas de se sentir fracassado?
-Sempre ignorei o óbvio. Sempre escondi minha covardia atrás das ideologias. Nunca tive a real coragem de tentar, então depreciava todos que, de alguma forma, lutavam. Pelo medo do fracasso não tentei. Assumi uma postura oposta ao sistema por medo de que não conseguiria sobreviver à ele. Combati o que eu sei que não venceria. Fui contra porque sabia que não teria competência de ter sucesso. Aliás, se fosse definir minha vida em uma palavra ela seria medo. Tinha medo das pessoas, não compreendia suas reações, tinha medo do fracasso que viria com certeza, tinha medo de não me amarem, tinha medo de não fazer diferença, tinha medo de tudo em que acabei me tornando.

O patético dele me impressionava. Aquele homem que sempre parecera sincero aos meus olhos estava agora se mostrando o mais hipócrita que eu já percebera. Tive raiva. Tive medo. Tive certeza. Sou igual à ele.

4 comentários:

Anônimo disse...

caralho. ler isso é um definitivo desespero. é o desespero do fim, o desespero da verdade, da certeza que é assim que as coisas verdadeiramente são. o desespero de pensar nisso todos os dias. o desespero de ler um texto teu, tão docaralho, que exemplifica toda a minha pira com a vida e com a velhice. que desespero, você é meu marido mesmo. ave.

Anônimo disse...

Vim no rastro de um mineiro, encontrei um escritor!
Li tudo que encontrei na página. Leria mais, se meu tempo permitisse. Mas lerei. É leitura que vale a pena!
E porque li muito, nada comento. Mas volto.
Beijos
PS. Vc tem razão. Não elaborei bem aquela frase. Covarde não é o ponto final e sim quem o esconde em infinitas reticências.

Anônimo disse...

ele nao é mineiro. não é gaúcho, nem pantaneiro. ele é meu. :-)

Luiz Roberto Lins Almeida disse...

o diálogo me impressionou. um dia ainda aprendo a fazer um desses.